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DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

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 Capítulo - 9 -

A imensa tristeza pela morte do avô começou a ser amenizada algum tempo depois, quando Carol conheceu o rapaz, um colega de escola, que iniciaria um novo capítulo de sua vida.

Carol estava interessada, mas ele tinha namorada. A jovem compartilhou a angústia com a mãe, que, lembrando de sua juventude, sentiu a velha faísca de femme fatale se reacender para dar conselhos à filha e ensinar seus infalíveis truques de sedução. Eram, basicamente, aqueles mesmos que Mireille cansara de usar em suas conquistas: fingir que não estava dando a mínima, bancar a misteriosa e gritar aos quatro ventos o imenso número de rapazes interessados nela. 

Diariamente a mãe aguardava a filha chegar da escola para saber das novidades. Juntas, debruçadas sobre um prato de sorvete de café, as duas planejavam as próximas ações. Para Mireille, aquilo era reviver. Só dois anos depois, contudo, começaria o namoro – que se prolongou por oito anos até o casamento, quando Carol tinha 26 anos.

Cada um a seu modo, Ibrahim e Mireille sofreram quando a filha saiu de casa. Ibrahim sempre foi muito dependente de suas relações afetivas. Quem visse aquele homem forte, seguro, não imaginaria sua vulnerabilidade. Ele passou a vida se entregando emocionalmente às pessoas das quais gostava, talvez por não ter tido quem fizesse isso por ele na infância. Não conseguia conviver com a idéia de que alguém que ele amava tanto, como Carol, poderia ser feliz longe dele. Já para Mireille tudo era bem mais simples: a dor da distância seria compensada pela felicidade da filha.

Adibe esteve no Brasil nas semanas que antecederam o casamento de Carol, mas não quis ficar para a cerimônia. Ela não gostaria de presenciar a neta se casando com um neto de italianos, descendente de cristãos novos. Sonhava vê-la unida a um representante da velha casta libanesa.

Além do mais, o noivo tinha a mesma idade da neta, e, na visão de Adibe, o melhor casamento acontecia entre uma mulher jovem e um homem mais velho, pois ele não teria tempo para se cansar dela e procurar outra. Adibe se baseava no próprio exemplo: tinha 23 anos quando se casou com Shahim, um homem 15 anos mais velho.

Adibe considerava que casar por amor era entregar-se ao sofrimento. Por isso, não ficava nem um pouco constrangida ao negociar casamentos arranjados para os membros de sua família – que, por respeito ao poder da matriarca ou às tradições, permitiam tal interferência. A exceção fora Ibrahim, e agora a história se repetia com a neta.

Carol já era mulher feita e queria ter a oportunidade de sentar-se ao lado da avó para explicar suas razões e argumentos. Mas Adibe nunca havia dado esse tipo de abertura à neta – para ninguém, na verdade. A postura dela, o tom de voz, monótono mas firme, a impávida expressão que não deixava transparecer emoções, tudo contribuía para transformar uma suposta conversa em monólogo, em discurso, em sermão. Adibe falava para ser ouvida e obedecida.

E era tão auto-suficiente... Certa vez, em Paris, ela escorregou, caiu, bateu a cabeça e teve um coágulo. Precisava ser operada, e seria uma operação de risco. Ibrahim foi avisado no Brasil e correu para a capital francesa, com Carol. Lá chegando, descobriu que a mãe havia convencido o médico de que seria melhor não fazer a cirurgia, com base em uma estranha lógica cartesiana. Perguntou o que poderia acontecer se ela não fosse operada: o médico disse que o coágulo poderia crescer, virar um aneurisma e matá-la a qualquer momento, ou então retrocederia espontaneamente e desapareceria. Em seguida, ela perguntou o que poderia acontecer caso optasse pela cirurgia: o médico disse que a intervenção poderia ter sucesso, mas havia o risco, inevitável, de que algo desse errado. Então ela arrematou:

-- Já que minhas chances são de 50% de um jeito ou de outro, não vejo vantagem alguma em fazer a cirurgia.

Em outra ocasião, durante a visita de Ibrahim e Carol ao Líbano em 1982, a família jantava ao redor da suntuosa mesa da casa de Adibe quando um estrondo transformou as janelas da sala de jantar e dos quartos em estilhaços. Enquanto Ibrahim e Carol se puseram a gritar, em busca de abrigo, Adibe nem piscou os olhos. Ordenou que os dois voltassem imediatamente à mesa e continuassem a refeição. Ao final do jantar, ela se informaria sobre a causa da explosão. Telefonou então para um de seus contatos no governo e descobriu que a Embaixada dos Estados Unidos havia sido atingida por um carro-bomba, vitimando mais de 200 marines norte-americanos.

O mais curioso é que, mesmo sabendo que seu neto Fady estudava à noite na Universidade Americana, localizada bem em frente ao consulado, Adibe continuou a demonstrar uma assombrosa calma até que o neto telefonasse para avisar que estava a salvo. Só no dia seguinte, no terraço do apartamento de Nouhade, de onde observava ao lado de Ibrahim e Carol a retirada dos pedaços de corpos lançados pela explosão para dentro do Mar Mediterrâneo, a dama de aço chorou.

Adibe morreu muitos anos depois, em 1996, sem voltar a se relacionar bem com o filho e sem presenciar a chegada da primeira bisneta, filha de Carol, no mesmo ano. No final da vida, ao menos, parecia tolerar melhor a presença de Mireille ao lado de Ibrahim. Afinal de contas, a união que ela previra não durar nem seis meses já se prolongava por quase quatro décadas.

Intimamente, Adibe reconhecia as virtudes da nora e admirava o seu jeito de encarar a vida, embora fosse absolutamente oposto ao seu. Ela jamais daria o braço a torcer, contudo.

Por sua vez, Mireille também reconhecia a força de Adibe, que lutou bravamente por seus ideais e, de certa forma, foi vítima dos acontecimentos que cruzaram seu caminho. No fundo, era solitária. Não permitia que os outros ultrapassassem a barreira criada pela personagem que lapidou ao longo dos anos. Adibe não cultivou amigos. Ninguém sabia exatamente o que aquela mulher sentia.

Carol via com tristeza o fato de jamais ter conversado “de verdade” com a avó. Depois da morte de Adibe, a neta passou a lembrar dela não como uma mulher fria e distante, mas sim como a avó carinhosa e acessível que talvez tivesse sido caso as circunstâncias da vida de ambas fossem outras.

Certa vez, Carol dava conselhos a uma amiga quando se lembrou de algo que a avó Adibe havia lhe dito. Mas logo parou para pensar se aquilo não havia sido dito por sua mãe… Naquele momento notou como a imagem das duas se fundia em sua mente. Carol se deu conta, então, de que nunca duas mulheres foram tão parecidas quanto Adibe e Mireille. A embalagem podia ser diferente, mas a essência era a mesma.

Com o passar dos anos, Ibrahim, Mireille e Carol tornaram-se, acima de tudo, grandes amigos e cúmplices. Quando a filha, já adulta, passou a apresentar sintomas do que mais tarde seria diagnosticado como Síndrome do Pânico, Ibrahim contou a ela que teve algo semelhante na juventude, a ponto de ter sido internado para tratamento. Só que, naquela época, o diagnóstico que Adibe recebeu do médico foi, simplesmente, o de que o filho estava enlouquecendo.

Carol compreendeu naquele momento porque o pai tomava tantos “calmantes” desde que ela era pequena. E descobria, enfim, que a culpada por tantos remédios não era Mireille, e sim aquela sensação de medo paralisante que consumiu o pai por vários anos, desde antes de conhecer a esposa.

Mireille também enfrentou muitos problemas de saúde ao longo da vida, embora, no caso dela, seja possível responsabilizar em grande parte a sua hipocondria. A única doença de longa duração que teve de verdade foi depressão, jamais diagnosticada devido à forma exuberante e voraz de viver. Antes do diagnóstico, contudo, ela e Ibrahim peregrinaram por dezenas de médicos, que não conseguiam encontrar nada de errado em Mireille.

Durante muitos anos, a mãe foi um enigma para Carol. Um enigma por vezes assustador, por vezes inspirador. As duas conversavam abertamente sobre qualquer assunto, menos sobre os sentimentos de Mireille. A mãe falava sobre seu passado, os lugares visitados, as amizades que fizera ao longo da vida, as lições que aprendeu a duras penas, os homens que passaram por sua vida, mas relatava tudo com a leveza e a distância de quem escreve um romance em terceira pessoa. O que ela sentia, de verdade, era algo que guardava apenas para si – exatamente como a sogra fazia.

 

***

 

Quando completou 40 anos, Carol ingressou no curso de filosofia. Em uma determinada aula, o professor comentou um experimento científico sobre estímulos. Uma espécie de sapo havia sido usada como cobaia. Quando esses animais desejavam se alimentar, esticavam a língua e capturavam um mosquito ou outro inseto presente na natureza ao redor. Os cientistas trataram então de confinar esses sapos em ambientes sem mosquitos, mantendo-os muito bem alimentados. Ainda assim, sem fome, eles continuavam esticando a língua em busca de insetos imaginários.

O professor relatava que o teste progrediu e os pesquisadores perceberam que, quanto menos encontravam os insetos, mais os sapos esticavam a língua em busca deles, até que o processo evoluiria para um mecanismo obsessivo. A teoria surgida a partir desse experimento pregava que, uma vez instalada a prática habitual resultante de um estímulo, animais podem responder a esse estímulo mesmo na sua ausência.

Carol aproveitou a deixa para perguntar ao professor se poderia haver alguma relação entre essa experiência e as síndromes obsessivas manifestadas pelos humanos. Ele respondeu que muito provavelmente sim. Carol fez então uma ligação imediata com a Síndrome do Pânico e o seu passado: se a doença desperta o mecanismo que faz sentir medo, é possível que o mal seja uma resposta tardia a um estímulo sentido muitas vezes anteriormente. E a menina havia passado toda a infância em sobressaltos causados pelas brigas dos pais.

          Carol foi então comentar a história dos sapos com o pai e a reação foi a pior possível. Ibrahim disse que aquilo tudo era uma enorme bobagem. Talvez tenha imaginado que a filha estava tentando culpar a ele e à mãe pela doença que a afligia.

Ibrahim não se mostrava nem um pouco confortável com o fato de ver a filha estudando filosofia, já que ele costumava ser a fonte de respostas para todos os problemas terrenos e existenciais que atormentassem Carol. Agora ela estava buscando esse tipo de informação em outras fontes. Ibrahim dizia que aquilo era uma grande perda de tempo, porque tudo o que se pode saber ou não sobre a vida cada um de nós vai descobrindo enquanto vive. A filosofia não teria, assim, a menor utilidade prática. Era um argumento que surpreendentemente contrariava a crença no valor do estudo e do conhecimento que Ibrahim sempre manifestara.

-- Veja o meu próprio exemplo. Estudei filosofia, mas jamais consegui mudar sua mãe!

Duas décadas antes, quando Carol decidiu disputar uma vaga na faculdade de marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), foi por influência do pai. Em uma época ainda com poucos cursos na área, ele a convenceu de que aquela seria a profissão do futuro. Ibrahim havia se rendido a Mireille! Carol seguiu o conselho, ingressou na universidade e se formou. Ela cogitara virar advogada, mas foi também o pai quem a desmotivou, lembrando-a de que a profissão estava saturada e a concorrência seria muito grande até que ela se transformasse em uma profissional reconhecida.

-- Vai ter que trabalhar em porta de cadeia ou dividir escritório com outros 5.000 advogados!, exagerava Ibrahim.

O ingresso na faculdade de filosofia levou Carol a uma reaproximação, ainda que rápida, com a tia Nouhade, que nunca saiu do Líbano. Nouhade, que também havia estudado filosofia na juventude e se lembrava daqueles anos como os melhores de sua vida, ficou sabendo da novidade pelo filho, Fady, que continuava se correspondendo com a prima no Brasil. Embora permanecesse rompida com Ibrahim, Nouhade escreveu um e-mail à sobrinha dando-lhe os parabéns e confidenciando que se arrependia por não ter dado seqüência aos estudos nessa área. Carol respondeu dizendo que ficava feliz em saber a opinião da tia e que aparentemente aquele pequeno ramo da grande família Malouf tinha vocação para seguir o caminho dos antepassados poetas e escritores das aflições humanas.

Em 2003, um câncer de cólon foi diagnosticado em Ibrahim. O médico disse que, em 90% dos casos, esse tipo de câncer é hereditário. Perguntou se havia outros casos na família. Sob o impacto da notícia, Carol decidiu ligar para a tia Nouhade ainda do hospital. Contou-lhe sobre a doença do pai e as duas começaram a chorar. A sobrinha alertou a tia sobre a necessidade de cuidar da saúde, já que se tratava de um mal hereditário, e Nouhade agradeceu a preocupação.

Então Nouhade pediu para falar com o irmão. Parecia que o tão esperado momento de reconciliação finalmente chegara. Ibrahim pegou o telefone e deu início a uma conversa emocionada. Pouco depois, contudo, ele e a irmã já haviam descambado para agressões mútuas.

-- Meu câncer tem alguns nomes, e um deles é o seu – acusou Ibrahim.

-- Pelo menos você ainda está vivo, enquanto eu já estou morta há muitos anos. E quem me matou foi você! – respondeu Nouhade.

Ambos falavam irados ao telefone. Ibrahim estava aos gritos, no meio do hospital, ofendendo a irmã de todas as formas que conhecia – menos mal que falava em árabe.

          Com a doença do pai, Carol passou a refletir mais e mais sobre o passado de Ibrahim e Mireille, tentando compreender a natureza daquela relação tão tempestuosa. Seria, afinal de contas, um caso de amor?

Mas como poderia ser amor se os dois passaram a vida às turras? Como poderia ser amor se, em tantas ocasiões, eles demonstraram não saber lidar com as diferenças de personalidade e na forma de encarar a vida?

Nem o peso da idade amenizou a intensidade das brigas. Os dois já haviam passado dos 70 anos e, cada vez que o telefone tocava, Carol continuava com o velho receio de que fosse uma ligação do hospital, da delegacia ou do necrotério. Os dois chegaram à velhice e Ibrahim continuava acusando Mireille de ter se casado com ele apenas por birra, para contrariar a poderosa Adibe, enquanto Mireille permanecia fazendo questão de dizer como havia sido magoada pelas atitudes da sogra. Eram fantasmas que pareciam eternos.

E por que passaram a vida às turras? Talvez porque o casamento tenha sido o palco em que ambos puderam, diariamente, reafirmar personalidades tão peculiares. Ou simplesmente combater a monotonia que muitas vezes bate à nossa porta... Carol se convenceu de que falar mal um do outro era apenas o passatempo predileto de ambos.

Bastava alguém aderir às críticas, contudo, para provocar uma curiosa reação contrária. Ibrahim subitamente começava a defender Mireille, argumentando que ela não tinha culpa de ser daquele jeito por não compreender as coisas direito, e Mireille passava a defender Ibrahim, dizendo que era preciso entender que ele enfrentou muitos desgostos na vida, como a morte do pai e os desentendimentos com a mãe e a irmã.

No fundo, Ibrahim era um romântico incorrigível. Seu sonho para a velhice era construir um pequeno hotel à beira-mar, em que ele e Mireille, morando na cobertura, ofereceriam um atendimento personalizado aos hóspedes. Chegou a comprar um terreno em Caraguatatuba, litoral paulista, e iniciou a obra. Mas os contratempos provocados pela economia superinflacionada da década de 1980 o obrigaram a desistir do projeto.

Na busca por possíveis explicações para a manutenção de um casamento que muitas vezes parecia infeliz, Carol chegou à conclusão de que os pais poderiam ter interrompido a relação a qualquer momento, e certamente tiveram muitas oportunidades para isso. É provável que tenham tido outras paixões, platônicas ou não, ao longo das quatro décadas de casamento, e o fato de permanecerem juntos era apenas mais uma prova de que os vínculos que os uniam eram muito fortes.

Carol sofria ao cogitar a hipótese de ser ela a grande responsável pela permanência do tumultuado casamento dos pais. Racionalmente, ela sempre recusou essa culpa. Afinal, tanto o pai quanto a mãe poderiam ter ido embora de casa, se quisessem. Mireille teria o pai a recebê-la de braços abertos e Ibrahim poderia seguir mundo afora em busca de novas aventuras. Carol finalmente concluiu que, assim como não era ela a causa das brigas, também não era a causa das reconciliações.

Mireille e Ibrahim podiam viver sob brigas constantes, mas se passassem algumas poucas horas distantes já sentiam falta um do outro. Como um casal assim poderia se separar para sempre? Mesmo que tenham se casado por impulso e que muitas das atitudes ao longo da vida tenham sido igualmente impulsivas, naquele distante ano de 1961 ambos estavam sem planos de vida que os levassem a olhar o futuro com esperança. O encontro no Hotel Kadri foi um presságio, a oportunidade de mudar o rumo desesperançoso de suas vidas.

          Carol concluiu que aquilo que Ibrahim e Mireille sentiam um pelo outro era amor. Por vezes sofrido, por vezes tortuoso, por vezes até caricato, mas era, sim, amor.

 

***

 

Permita-me interromper sua leitura neste momento. Achei que já era hora de falar em primeira pessoa. Sou Carol, a filha de Ibrahim e Mireille. Como você já percebeu ao longo deste livro, aqui está a história dos meus pais e um pouco da história do meu país, do meu povo e de toda uma região desconhecida pela maioria dos ocidentais.

Meus pais sempre me despertaram enorme curiosidade e por vezes espanto. Quantas e quantas vezes me peguei relatando suas façanhas aos amigos e até mesmo a estranhos que acabara de conhecer? Nessas ocasiões, provocava neles a mesma reação de fascínio e estupefação que os fatos causaram em mim ao longo dos anos.

Não foram poucas as vezes que ouvi a sugestão de contar tudo – ou quase tudo – em um livro. Aqui estou eu, portanto, tentando montar um quebra-cabeças que já me ocupou por 40 anos e que, percebo claramente, permanece incompleto.

Hoje compreendo que imigrar para o Brasil me fez olhar os libaneses e os meus pais de uma forma diferente daquela que eu teria feito caso tivesse permanecido no Líbano. Provavelmente as diferenças que enxerguei neles não seriam tão evidentes numa sociedade em que ser como eles não é tão espantoso.

É falsa a idéia de que imigrantes que chegam ao Brasil ou a qualquer outro país assimilam imediatamante novos hábitos e costumes. São necessárias várias gerações para que isso de fato ocorra. No meu caso, sinto ainda que estou entre dois mundos, dois pontos distantes entre os quais ainda não consegui estabelecer uma ligação plena.

Como seriam meus pais aos meus olhos em outro contexto, no seu “habitat natural”, frutos do país que deixei na infância, de uma cultura que me foi transmitida mas com a qual pouco convivi? Quem seria eu hoje caso tivesse permanecido no Líbano, um país com metade da área do menor estado brasileiro, o Sergipe, mas que sempre foi um território conturbado por ser o ponto de intersecção entre dois mundos bem diferentes, a Europa cristã e o universo árabe muçulmano?

A difícil decisão de meu pai – deixar o país que amava acima de tudo – mostrou-se acertada. Em abril de 1975, a panela de pressão que permanecia em fogo alto no Líbano finalmente explodiu. A guerra civil tomou conta das ruas e a situação se agravou com a interferência da Síria, aliada inicialmente aos muçulmanos e depois aos maronitas.

Em 1982, apoiado por algumas facções cristãs, Israel invadiu o Líbano. Depois que bombardeios em Beirute obrigaram a OLP a se retirar, a Síria tentou reduzir a influência israelense no país. Nesse momento, a solução do conflito parecia impossível, tantos eram os grupos e facções envolvidos.

No final dos anos 80, uma proposta batizada de “reconciliação nacional”, que estabelecia igualdade entre cristãos e muçulmanos no governo, foi apoiada por Estados Unidos, União Soviética e outras potências. Mas o general cristão Michel Aoun não aceitou o acordo e se declarou presidente – até ser deposto por forças da Síria, que assumiram o papel de guardiãs da paz no Líbano. A guerra se estendeu de 1975 a 1991.

Ao final do conflito, foram necessários dez anos para recuperar o centro histórico da cidade, uma área de cinco quilômetros quadrados. O trabalho, que custou a astronômica quantia de 12 bilhões de dólares, foi inteiramente bancado pela iniciativa privada. A captação de recursos foi liderada pelo ex-primeiro-ministro Rafic Hariri. Ele se propôs, com sucesso, a restaurar a arquitetura da região tal qual ela era antes do conflito, resistindo ao caminho mais fácil de demolir os escombros e ocupar o espaço com prédios modernos. Hariri foi morto em um atentado em Beirute em fevereiro de 2005, fato que iniciou uma onda de protestos internacionais e acabou precipitando a retirada de tropas sírias do Líbano, depois de três décadas de ocupação.

Hoje, ao constatar que sou de fato uma libanesa no exílio, com coração certamente brasileiro, as emoções – que já foram de surpresa, constrangimento, orgulho, pavor, medo e intensa alegria – são agora muito mais serenas. Meus pais são quem são, provavelmente nada mais que libaneses dramáticos como todos os libaneses. E os amo assim.

Somos uma família de imigrantes – ou seja, uma família “diferente”. Apesar de termos adotado outra nacionalidade e deixado a pátria de origem, esperando assimilar as diferenças e participar dessa imensa e rica mistura que é o povo brasileiro, continuamos libaneses. Libaneses do mundo, porém.“Diferentes” também para os libaneses que ficaram. Nômades em busca de uma identidade.

            Somente em São Paulo há mais libaneses e seus descendentes do que no próprio Líbano. Libaneses que não são somente comerciantes, mas também médicos, jornalistas, escritores, banqueiros, engenheiros, professores, agricultores e empresários. Gente que veio ao Brasil não apenas com a intenção de enriquecer, mas também de contribuir para construir aquele que prometia ser o país do futuro.

Sentir-se estrangeiro tanto no país natal quanto no país que se adotou é algo comum a qualquer imigrante. Muitas vezes me pergunto se é realmente importante pertencer a algum lugar, um país, ter raízes, um governo, uma religião, um nome de família. E sempre constato que sim, tudo isso é importante – afinal, ninguém consegue viver só.

No meu caso, sou brasileira por opção. Aliás, sempre acreditei ser tão brasileira quanto todos os nascidos aqui. Fiz até um juramento no Ministério da Justiça, que me assegurou a condição de brasileira perante a lei. Em parte me enganei: sou uma libanesa, um tanto desatualizada com o meu país de origem, que continua tentando ser brasileira, por mais que muitas vezes não entenda o Brasil.

Talvez este seja um dos problemas que não permita ao Brasil superar alguns de seus obstáculos históricos. Um país de imigrantes precisa de mais tempo para que seus cidadãos desenvolvam um verdadeiro sentimento patriota. Enquanto continuarmos a nos enxergar como “filhos” ou “descendentes” desta ou daquela pátria, não nos sentiremos integrados e prontos para o desafio de construir um “Brasil brasileiro”, do qual todos, independentemente das origens, possam se orgulhar.

Já é hora, aqui no Brasil, de deixarmos de ser somente descendentes de libaneses, italianos, alemães ou japoneses para nos transformarmos naquilo que viemos procurar e que livremente escolhemos: ser brasileiros.

O Brasil da minha infância é diferente do Brasil que vejo hoje. Aquele país ufanista dos anos 70 era uma ilusão. Muitos dos estrangeiros que aqui chegaram talvez já não o enxerguem com tanto otimismo, já não apostem tanto nele. É possível que os imigrantes de hoje escolham a China ou a Índia como porto de chegada. Não faz mal: muitos aqui já chegaram e não pretendem ir a lugar algum.

Meus pais decidiram vir e ficar. Talvez a busca deles por um “verdadeiro lar” tenha sido um dos ingredientes a transformar a história de Ibrahim e Mireille em algo tão singular.

Este livro certamente serve mais a mim do que a você, caro leitor, que talvez tenha encontrado aqui um pouco de diversão e entretenimento. Para mim, esta obra é antes de tudo uma prova pública da minha aceitação e gratidão pelos pais que tenho. Eles me ensinaram que é possível ser diferente e deram início à missão que pretendo honrar, oferecendo ao Brasil o que tenho de melhor: meus filhos.

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