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DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

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 Capítulo - 7 -

Depois dos dois primeiros anos trabalhando com os tios na Compapel, uma fábrica de caixas de papelão, Ibrahim estava insatisfeito. Ao ingressar nos negócios da família no Brasil, ele esperava ter uma atuação mais estratégica, com um cargo na administração, mas não conseguia passar da condição de mero vendedor. E, como não obtinha acesso às informações que desejava sobre a situação das empresas, começou a desconfiar de irregularidades. Era uma situação complicada, porque seus tios haviam recebido de Adibe carta branca para cuidar dos negócios e do filho no Brasil.

O maior empecilho no caminho de Ibrahim era Tawil, o irmão caçula de Adibe. Os dois tinham quase a mesma idade – o tio era apenas dois anos mais velho que o sobrinho. A proximidade etária fez nascer uma relação de rivalidade entre os dois. Tawil detestava Ibrahim porque na adolescência de ambos o sobrinho havia lhe roubado a condição de “queridinho” da mãe e da irmã mais velha. Ainda assim, quando Tawil ingressou na faculdade de medicina, Adibe não apenas bancava o curso como ainda dava um dinheiro extra todo mês para que o irmão gastasse livremente.

Quando seu pai morreu, Ibrahim foi passar algum tempo no Brasil, com a avó, tias e tios. Tinha 16 anos e foi tratado como o novo caçula da família, até porque precisava de carinho adicional por estar abalado pela morte do pai. Tawil teve que ceder o quarto para Ibrahim e até o lugar na mesa, à direita da matriarca.

Como financiava Tawil, Adibe se dava ao direito de opinar sobre sua vida afetiva. Ele foi apaixonado por uma bela italiana chamada Irene Bianchi, mas consta que Adibe não autorizou o namoro e a relação foi interrompida. Para Adibe, casamento por amor era uma hipótese que simplesmente não deveria ser levada em conta – mesma razão que a levou a classificar como estupidez o fato de Ibrahim ter escolhido uma “desclassificada” como Mireille.

Sempre que possível, Zareh fazia questão de patrocinar a viagem da filha e da neta a Beirute. Nessas ocasiões, Mireille matava um pouco da imensa saudade que sentia do pai, dos amigos de infância, dos companheiros da época de badalação e da cidade. Nos dias que passava no Líbano, relembrava a vida livre e despreocupada dos tempos da adolescência.

Quando voltava ao Brasil, Mireille sentia a vida excessivamente monótona. Face às limitações orçamentárias, fazer compras deixou de ser um passatempo ao qual ela podia se lançar despreocupadamente, como nos tempos de solteira.

O que ela chamava de monotonia era uma vida muito mais agitada do que a desfrutada pela maior parte das mulheres de sua época, contudo. Mireille trabalhou como assistente do estilista Ugo Castellana, dando conselhos sobre moda a damas da alta sociedade paulistana. Durante um período foi também vendedora independente de roupas de grife, o que a fazia viajar sistematicamente à Argentina e à Europa para selecionar produtos que não existiam no mercado brasileiro.

A soma dos problemas que encontrava no Brasil – a suposta monotonia que a torturava no cotidiano, as dificuldades de adaptação aos costumes do país, a saudade do Líbano, as crises financeiras, as freqüentes discussões com Ibrahim – fez Mireille tomar uma decisão em 1973: ir para Beirute com a filha, sem data para voltar. Na realidade, sem prometer que voltaria.

Como normalmente ocorria, o casal não fez planos a respeito. A decisão de Mireille era só dela e não foi discutida antecipadamente com Ibrahim. Ele, por sua vez, não opôs resistência: deixou-a ir, pedindo apenas que mantivesse contato. Não chegaram a discutir se era uma mudança definitiva. Houve apenas uma leve preocupação com os estudos de Carol, mas o problema foi resolvido quando a professora se comprometeu a abastecê-la de cadernos e livros suficientes para meses de estudos longe da escola.

A viagem incluiu escalas em Paris e em Dakar, capital do Senegal. Mireille e a filha foram carinhosamente recebidas por Zareh, como sempre, e assim tiveram mais uma vez a oportunidade de reviver os tempos dos quais sentiam muita saudade.

Carol passava seus dias no Líbano entre o hotel para o qual o avô havia se mudado e a casa de Adibe. Em ambos os lugares, tinha plena liberdade para abrir a geladeira a qualquer hora e se servir. Resultado: ganhou 14 quilos em seis meses, algo assustador para uma menina de apenas 10 anos. Mireille, que sempre deu muito valor à beleza física e detestaria ter uma filha obesa, decidiu agir drasticamente para conter o aumento de peso da filha. Houve dias seguidos em que a obrigou a comer apenas repolho e couve-flor.

Alguns acontecimentos durante essa visita ao Líbano mudariam para sempre a visão de Carol sobre a vida. A guerra civil havia alterado drasticamente a situação financeira e o padrão de vida dos avós. Enquanto Zareh vivia em um hotel, Marie se viu obrigada a encontrar uma moradia mais modesta. Mudou-se para um pequeno apartamento de um dormitório em um bairro de palestinos, onde Carol passava os finais de semana.

          Desses encontros nasceu uma nova relação entre a avó, até então distante e misteriosa, com a neta. Marie buscava Carol no hotel de Zareh e de lá as duas embarcavam em um ônibus, cumprindo um trajeto de quase uma hora. Era tempo mais que suficiente para que a avó falasse de sua vida de forma leve e alegre, ainda que incluísse passagens tristes como a surdez do irmão preferido, causada por meningite, ou o dia em que o pai alcoólatra perdeu tudo numa mesa de jogo.

          Marie era uma mulher doce e frágil, mas a vida lhe ensinara a se proteger dos perigos. O bairro em que morava era pobre, sujo, bagunçado e repleto de conflitos políticos e sociais. Na primeira visita, Carol sentiu medo. Pouco a pouco, contudo, aquele lugar passou a transmitir-lhe uma inesperada sensação de segurança e conforto. Era uma comunidade que, apesar das dificuldades, oferecia tudo o que era necessário para ser feliz.

As portas dos apartamentos do conjunto de prédios em que a avó de Carol morava permaneciam abertas para que as vizinhas pudessem passar o dia conversando enquanto cozinhavam. O trabalho de lavar as roupas, o mais extenuante de todos, era compartilhado. Nos corredores as crianças brincavam despreocupadamente e a música árabe, a todo volume, ecoava pelos vãos das escadas do edifício. Enquanto as meninas trocavam suas bonecas, os meninos brincavam com as tampas de refrigerantes que recolhiam ou de bola, quando aparecia uma no bairro. O programa mais sofisticado era ir ao cinema, aos sábados, assistir comédias ingênuas.

Nessa época Carol fez amizade com o menino do apartamento em frente ao da avó. Miúdo, de pele clara e olhos esverdeados, ele tinha uma coragem que até então Carol não sabia que crianças podiam ter. Fazia as compras de casa sozinho, falava com os feirantes da rua e com os outros adultos de igual para igual, pegava o ônibus para atravessar a cidade e buscar alimentos que não existiam nos mercadinhos locais.

Certa vez o menino convidou Carol para o cinema, prontificando-se a comprar os ingressos e os refrigerantes com o dinheiro que havia economizado ao longo do mês. Fazia questão. Combinaram o programa e o menino esperou na porta do cinema por uma hora, mas Carol não apareceu. Sua avó Adibe já havia feito outros planos para ela e, como o rapaz não tinha telefone, Carol não pôde avisá-lo.

A menina nunca mais esqueceu daquele dia. De como chorou ao imaginar o amigo esperando, certamente convencido de que ela era mais uma riquinha cristã que não se importava com os sentimentos dos já tão maltratados palestinos. Para Carol, contudo, ele era muito melhor e mais importante que todos os amigos que fizera numa das mais caras escolas de elite no Brasil. A menina jurou, naquele dia, que jamais voltaria a magoar um amigo daquela forma.  

Naquela semana, a menina almoçou na sua lanchonete favorita, Wimpy’s, com a avó Marie. Enquanto as lágrimas corriam pela face de Carol ao conversarem sobre a desilusão que ela causara ao amigo, a avó lhe dizia, com seu semblante sempre tranqüilo, que muitas outras vezes a vida a colocaria em situações nas quais não desejaria estar. O importante, nesses casos, seria buscar a oportunidade de corrigir os erros cometidos. Carol infelizmente não teve esta oportunidade.

          Naquele mesmo mês, um ônibus cheio de palestinos explodiria no centro de Beirute, origem de tensões que afundariam o país na longa guerra civil que oporia os cristãos maronitas à coalizão formada por drusos e muçulmanos.

Aos poucos, Mireille e Carol começavam a sentir e a demonstrar a vontade de voltar ao Brasil. Depois de quase um ano no Líbano, elas desembarcaram em São Paulo e Ibrahim pôde matar as saudades.

 

 

 

***

 

 

A fazenda de Kfardabach era a última amarra que ainda prendia Ibrahim a um passado que, cada vez mais, ele sentia que era preciso abandonar. Desde que deixara o Líbano, ele havia autorizado a venda da propriedade, mas a mãe dizia que não estava fácil encontrar um comprador. De fato, fechar um negócio daquele porte em meio a uma guerra era algo improvável.

E ainda havia uma condição imposta por Ibrahim: que a fazenda não fosse parar nas mãos de uma determinada família de colonos com a qual não simpatizava – não apenas por não terem vínculos ancestrais com Zahle, mas sobretudo por terem enriquecido de forma rápida e estranha, com indícios de atividades ilícitas. Ibrahim desconfiava que essa família mantivesse ligações com a Síria, que já há algum tempo demonstrava a intenção de invadir o Líbano. E Kfardabach, localizada entre altas colinas, poderia ser um ponto estratégico durante um eventual conflito.

Ibrahim deixara ordens expressas para que a propriedade não fosse negociada com essa família. Com o passar dos anos e a dificuldade para vender a fazenda, era provável que tal determinação tivesse arrefecido. Quando o negócio foi finalmente fechado, ele não demonstrou maior interesse em saber quem era o comprador, tamanha a satisfação em receber a bolada em um momento de necessidade. Da mesma forma, a mãe, a irmã e o cunhado se alegraram muitíssimo com o negócio, pois teriam direito a uma comissão. Para acertar todos os detalhes e pegar o dinheiro, Ibrahim marcou um encontro com Adibe em Paris, ocasião em que tudo transcorreu de forma muito cordial.

Ibrahim até perguntou sobre o comprador da fazenda, mas Adibe deu respostas evasivas, contando que toda a negociação se dera por meio de um procurador. Pressentindo algo que não aprovaria, Ibrahim achou melhor não insistir naquela conversa para não descobrir o pior e se sentir obrigado a recusar o negócio.

Anos depois, no entanto, um amigo libanês visitou Ibrahim no Brasil. No meio da conversa, esse amigo disse:

-- Você deu muita sorte de vender a fazenda, ainda mais para aquela gente.

-- Como você sabe para quem foi vendida a fazenda? – rebateu Ibrahim.

-- Ora, o Líbano inteiro sabe.

O amigo confirmou que os compradores eram mesmo da família que Ibrahim detestava. Mostrando-se revoltado, embora certamente tenha desconfiado desde o início, Ibrahim ligou para a mãe no Líbano, convocando-a a ir imediatamente ao Brasil prestar esclarecimentos. Adibe embarcou o mais rápido possível e os dois tiveram uma conversa dura, presenciada por Carol, em um quiosque de frutas numa avenida de São Paulo. Adibe não admitiu saber que os verdadeiros compradores eram da tal família, reafirmando que toda a negociação havia sido intermediada por um senhor maronita de grande honestidade e dignidade.

Enquanto discutia com o filho naquela tarde, Adibe olhava para a neta sentada ao seu lado. Ironicamente para Mireille, quanto mais Carol crescia, mais as pessoas diziam que ela se parecia com Adibe. Embora a avó tivesse um grande amor por Carol, nunca se sentia à vontade para manifestá-lo. Afinal, como era possível uma desclassificada como Mireille ter tido uma filha tão igual a ela, Adibe, não apenas fisicamente, mas até mesmo na personalidade?

Ibrahim não se convenceu com os argumentos da mãe sobre a negociação da fazenda. As relações entre eles, que já eram ruins, ficaram comprometidas de vez a partir dali.

A versão da história que chegava à alta sociedade do Líbano era a de que Ibrahim não estava sendo um bom filho, que não entendia os esforços da mãe e a fazia sofrer por ter se rebelado contra suas vontades. Quando tomava conhecimento desses comentários, Ibrahim ficava muito irritado e cada vez mais compreendia que o desprezo pela elite libanesa que Mireille sempre demonstrara era um dos fatores que mais o atraíram na esposa.

A casta que se considerava a elite do Líbano adorava manter as aparências, o glamour, o status, mas apreciava uma boa fofoca. Motivos para tanto não faltavam: debaixo do tapete de casamentos supostamente felizes e relações perfeitas entre pais e filhos – como faziam supor as notas e fotos das colunas sociais – havia muita hipocrisia. Eram pessoas que não raro se odiavam, mas na frente dos outros agiam como se adorassem umas às outras.

Essa casta era composta por um grupo pequeno de famílias, onde todos se conheciam. Era um clube fechado, que não admitia intromissões. Os filhos dessas famílias normalmente se casavam entre eles, estratégia para perpetuar o status que julgavam desfrutar. Consideravam-se nobres, cultos, capazes de representar bem o Líbano em qualquer lugar do mundo. Não aceitavam o fato de que o país já estava sendo representado havia muito tempo por outros, mundo afora, alguns de forma exemplar e outros nem tanto, independente de religiões, classes sociais ou de qualquer ascendência secular.

Por sua força, cultura e beleza, Adibe foi de tal forma abraçada por essa elite que acabou se identificando com ela e agindo como se nunca tivesse estado fora dela, para espanto do filho.

Se havia alguém no Líbano que não compartilhava da opinião geral sobre Ibrahim, era seu sobrinho Fady, filho único de sua irmã Nouhade. Fady sofria ao ouvir comentários maledicentes sobre o tio, pois sempre tivera verdadeira adoração por Ibrahim. Na adolescência, passou uns tempos com ele no Brasil e chegou a ganhar uma pequena motocicleta de presente do tio, para que pudesse se sentir livre, situação oposta à que lhe era imposta no Líbano. Para um jovem criado sob o rigor de uma família conservadora, e de uma guerra civil sem fim, aquilo soava como um admirável mundo novo.

A experiência brasileira ficou tão marcada para Fady que, depois do rompimento da mãe e da avó com Ibrahim, ele decidiu escrever uma longa carta ao tio, em que revelava a vontade de fugir do Líbano, assim como o próprio Ibrahim fizera. Perguntava se o tio o receberia no Brasil. Ibrahim decidiu não responder a carta. “Se eu disser que o aceito aqui, matarei minha irmã e meu cunhado de desgosto. Se eu disser que não o aceito, deixarei o rapaz triste e desesperançado”, pensava. Ibrahim só não imaginou que talvez a irmã aprovasse o pedido do filho, desejando que ele tivesse uma experiência de vida menos violenta do que aquela no Oriente Médio. 

A solução encontrada por Ibrahim – simplesmente não se manifestar a respeito – decepcionou Fady. Ele preferia ouvir um “não” à suposta indiferença demonstrada pelo tio. Assim, o que era admiração e idolatria virou tristeza. Fady prometeu que jamais voltaria a falar com Ibrahim. Continuou, porém, trocando correspondências com Carol.

Nesses contatos, os dois agiam como se os pais não existissem. Tanto Nouhade quanto Ibrahim sabiam que os filhos se correspondiam e, no fundo, ficavam felizes ao perceber que algum tipo de vínculo estava sendo mantido na família. Era a esperança de que, um dia, as relações entre todos se tornassem mais harmoniosas.

Carol e Fady tinham boas histórias em comum. Uma das visitas que Carol fez ao Líbano, desta vez apenas ao lado do pai, ocorreu no auge da Guerra Civil, em 1982, quando ela tinha 18 anos. A destruição já podia ser percebida logo na chegada a Beirute: o aeroporto projetado por Zareh estava parcialmente destruído e quase sem iluminação. Naquele momento era controlado pelos fedains, a milícia do comando arabe pró-palestinos, mas a qualquer momento poderia ser tomado por milícias cristãs da falange ou pelos muçulmanos xiitas do Hezbollah.

Criado por um grupo de clérigos xiitas, oriundos do Irã, o Hezbollah (“exército de Deus”, em árabe) surgiu no Líbano na virada da década de 70 para a de 80, em meio à Revolução Islâmica no Irã (1979) e à invasão israelita ao sul do Líbano (1982). O principal objetivo do Hezbollah ao ser oficializado, em 1982, era expulsar as forças armadas israelitas do sul do Líbano e estabelecer um estado islâmico nos moldes daquele criado no Irã.

O Hezbollah estabeleceu-se principalmente nas áreas de maioria xiita do Líbano, como o sul do país, o Vale de Bekaa e o sul da cidade de Beirute. Os militantes do grupo foram recrutados entre jovens xiitas, muitos dos quais tinham sido membros do Amal, milícia laica pró-Síria. O Hezbollah foi apoiado financeiramente pelo Irã e mais tarde pela Síria, que utilizou o grupo na disputa com Israel sobre os Montes Golã.

Em 1987, apareceria, no território da Faixa de Gaza, o Hamas, nos mesmos moldes do Hezbollah. O Hamas é um grupo político palestino, cuja sigla designa o Movimento de Resistência Islâmica – ou seja, a luta contra a existência do Estado de Israel. Preconizando essa luta por todos os meios, visando a libertação da Palestina “desde o Rio Jordão até o mar”, o Hamas é contrário às políticas da OLP e da Fatah, às quais considera conciliadoras.

No aeroporto em ruínas de Beirute, assim que desciam do avião os passageiros eram transportados por um ônibus caindo aos pedaços, sem bancos e com marcas de balas. O cunhado de Ibrahim, que àquela altura era procurador-geral da República do Líbano, estava à espera de Ibrahim e Carol. No carro, toda a conversa entre ele e o motorista se deu em torno da melhor rota a cumprir, levando em conta os movimentos mais recentes da guerrilha.

Apesar do aparente caos, os libaneses tentavam levar a vida mais normal possível. Quando a sirene tocava anunciando bombardeios, todos desciam aos abrigos antiaéreos que haviam sido construídos nos porões das casas. Permanecia-se lá por dois ou três dias. Era fundamental levar um radinho a pilha, para acompanhar as notícias, e um baralho. Outro passatempo era tentar adivinhar, pelo som dos bombardeios, o bairro que estava sendo atingido. Poucos dias depois da chegada, Carol e Ibrahim viveram a experiência do abrigo antiaéreo. Era tudo assustador e ao mesmo tempo fascinante para ela.

Os bombardeios eram tão intensos e intermitentes naquele ano que Carol só conseguia adormecer usando fones de ouvido com música em volume alto, para cobrir o ruído das bombas. Ajudava, também, imaginar que estava próxima a um dos estádios de futebol de São Paulo e que aqueles sons eram fogos de artifício em comemoração a gols e vitórias.

Certo dia, Carol foi levada pelo primo Fady para uma grande aventura: visitar o centro de Beirute – que, àquela altura, não era muito mais do que um amontoado de ruínas. Tal incursão era evidentemente perigosa, não apenas pela presença de milícias antagônicas, mas também pela existência de minas.

Foram cenas inesquecíveis para Carol, que, na infância, havia testemunhado a exuberância do centro de Beirute, cheio de vida com o mercado público, as feiras, as lojas sofisticadas. Antes da guerra, a cidade era muito procurada por turistas, interessados em sua riqueza histórica e arquitetônica. Agora os prédios estavam quase todos destruídos. As poucas paredes que restavam em pé haviam se transformado em peneiras, cheias de furos.

Fady era o guia de Carol naquele inusitado tour pelo centro de Beirute. A cidade estava dividida pela chamada “linha verde”, que colocava cristãos de um lado e muçulmanos de outro. No caminho, os veículos que circulavam eram parados em barricadas de guerrilheiros, que enchiam o condutor de perguntas.

Certamente por influência dos traumas causados pela guerra, Fady havia desenvolvido uma gagueira nervosa. Com esse problema na fala, ele tinha dificuldade para responder às perguntas nas barricadas. E o pior é que a gagueira aumentava ainda mais quando o rapaz ficava ansioso. Assim, ele e Carol permaneceram longos períodos estacionados nas barreiras tentando explicar dois fatos: o que uma jovem vinda do Brasil fazia por lá e, afinal de contas, que tipo de turismo era aquele? Para complicar ainda mais, as respostas tinham que ser elaboradas de diferentes formas, dependendo da facção que ocupava cada barricada naquele momento.

Não foi à toa que Carol alegrou-se infinitamente quando o passeio chegou ao fim e ela pôde se ver novamente na “segurança” do abrigo antiaéreo...

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