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DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

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 Capítulo - 2 -

Ibrahim foi ao hotel com um primo, Tôni, que passava uma temporada na fazenda – os dois iam eventualmente ao Kadri para jogar gamão, beber e jogar conversa fora. Ao avistar Mireille, Ibrahim logo lembrou da menina arrogante, de nariz empinado, que falava um árabe macarrônico. Como estudara em escola francesa – Beirute havia sido colônia francesa até 1948 –, ela preferia conversar no idioma de Proust, o que soava como exibicionismo para quem tinha orgulho das origens e grande interesse pelo legado dos antepassados, como Ibrahim, um árabe típico.

O desempenho de Mireille na escola nunca foi dos melhores. Quando ela completou 15 anos, o pai perguntou-lhe o que, afinal de contas, ela planejava fazer na vida, do que gostava, pelo que se interessava de verdade. Mireille respondeu que gostava de tocar piano, de jogar tênis, de cozinhar e de moda. Zareh pesquisou para descobrir um lugar onde ela poderia aprender e exercitar tudo isso e chegou a uma escola de boas maneiras na Suíça.

E lá foi Mireille para o pensionato freqüentado não apenas pela nobreza européia, mas também por princesas árabes e outras futuras damas da sociedade ao redor do mundo. Se ela já era mimada, certamente ficou muito pior depois dos dois anos que permaneceu na Suíça. Nenhuma daquelas moças planejava estudar de verdade, dedicar-se com afinco ao aprendizado de matemática, ciências, essas coisas – afinal, trabalhar e ganhar o próprio dinheiro não era propriamente o sonho delas.

Os critérios de escolha das disciplinas a estudar eram peculiares. As meninas se matriculavam na aula de tênis porque o instrutor era bonito. Como piano dava muito trabalho e exigia dedicação, essa não era a atividade mais popular. Nas lições de culinária, o que nenhuma delas queria aprender eram os pratos doces, para não cair em tentação e ganhar peso.

Certa vez, num fim de tarde ensolarado em Lausanne, Mireille se encontrou com amigos de várias partes do mundo e, diante dos relatos sobre o grau de habilidade de cada um com os esquis, ela não hesitou em afirmar que era uma exímia esquiadora. Na realidade, tivera não mais do que uma ou duas aulas. Bem equipada, ao menos, Mireille estava. Havia ligado para o pai e pedido dinheiro para comprar o equipamento que acabara de sair na capa da mais glamourosa revista de moda em Paris.

Quando o grupo de amigos decidiu testar uma das mais difíceis pistas locais, Mireille não teve coragem para admitir que havia exagerado sobre sua habilidade no esporte. Subiu de teleférico ao topo da pista e, em vez de temerosa pelo que enfrentaria, estava feliz da vida pela oportunidade de exibir seus novos casacos e o equipamento ultramoderno.

          Eram quatro da tarde quando Mireille chegou ao topo da montanha. Ela inventou uma desculpa qualquer – algo como “vão indo na frente que preciso ajustar meus esquis” – para não revelar a fraude. Os colegas mais habilidosos seguiram e esperaram os demais lá embaixo. Mireille imaginava que conseguiria descer lentamente, mas a pista era íngreme demais para isso. E a verdade é que ela mal conseguia se equilibrar no par de esquis. Então pensou em descer sentada, o que certamente consumiria horas. Àquela altura, contudo, não havia alternativa.

          O tempo passava e Mireille não aparecia na base da pista. Quando anoiteceu de vez, os responsáveis pelas meninas do internato ficaram desesperados e uma equipe de resgate se formou. Iniciou-se uma busca que mobilizou dezenas de pessoas. A “exímia esquiadora” foi encontrada, com muito frio, sentada, aguardando que alguém viesse resgatá-la. E ainda encontrou ânimo para se encantar com o yodel, o canto tirolês usado pelos policiais na montanha para fazer contato com pessoas perdidas. “Muito chique, muito europeu”, pensava ela enquanto tremia o queixo.

Mireille adorava ser o centro das atenções, ainda que em sacrifício do bom senso. Muitas vezes ela fazia questão de não assimilar o que o mundo civilizado convencionou chamar de “hábitos e costumes”. Seu mundo era exclusivo, sua realidade uma fantasia permanente. Para ela, só assim valeria a pena viver. O resto era passar pela Terra sem grandes emoções – “uma merda”, como gostava de repetir carregando no charmoso sotaque francês.

 

***

 

          Na infância, Mireille costumava ir ao Hotel Kadri acompanhada do pai e do irmão. Não tinha a figura materna por perto, o que era completamente fora dos padrões. O pai, Zareh, dava-lhe toda a liberdade para fazer o que bem entendesse. E a enchia de mimos, realizando todos os seus desejos. Ela saía quando queria e não precisava dar explicações sobre nada. Era tudo muito moderno não apenas para Ibrahim, mas para todos os demais freqüentadores do hotel, a “nata” da sociedade, que olhava aquela família com desconfiança.

          Mas ali estava ela, desta vez sem o pai por perto, naquele hotel quase vazio, olhando – por absoluta falta de alternativas – para o mais insosso dos seres sobre a face da Terra, o tal do Ibrahim.

-- Onde diabos fui me meter..., ela repetia baixinho.

Mireille o considerava não apenas grosseiro e caipira, mas também pretensioso por bancar o galã em função da semelhança física com o ator Omar Sharif. Para as meninas da região, que jamais tinham saído dali, Ibrahim era mesmo o homem mais belo do mundo. Pretendentes e “passatempos”, de fato, não lhe faltavam.

Graças à antipatia recíproca na adolescência, Mireille e Ibrahim logo se reconheceram e acharam curioso aquele reencontro – afinal, não se viam havia um bom tempo. O movimento de aproximação veio de Ibrahim, até porque Mireille jamais daria o primeiro passo nesse sentido. Ela sempre adotava a tática da indiferença: fingir que não estava dando a mínima era a fórmula infalível para atrair as atenções masculinas.

-- Podemos nos sentar aqui com vocês?, perguntou Ibrahim.

Mireille permaneceu fiel à personagem que adorava interpretar:

-- Desculpe, mas estou com dor de cabeça e preciso descansar.

Levantou-se e seguiu rumo ao quarto, imediatamente acompanhada por Sônia. Os dois rapazes ficaram sem ação.

Na noite seguinte, Ibrahim e Tôni novamente apareceram no piano-bar. Só que, desta vez, Sônia não quis perder a chance de conhecer aqueles rapazes simpáticos e, ao perceber que eles novamente se aproximavam, implorou para que Mireille continuasse na mesa. Mireille devia esse favor à fiel acompanhante e, assim, os quatro finalmente se reuniram.

Enquanto Sônia e Tôni conversavam animadamente, Ibrahim e Mireille se limitavam a trocar poucas palavras. Até porque ela mal conseguia entender o árabe dele. Àquela altura, o idioma original da região era um privilégio para os poucos que ainda se dispunham a estudar o Líbano do tempo dos fenícios, primeiro povo a construir embarcações e a atravessar os mares. Era justamente sobre essa riqueza histórica que Ibrahim discorria, enquanto Mireille fazia questão de não demonstrar o menor interesse pela conversa. “Como alguém pode viver acreditando que vive no centro do universo, que é a fonte de toda a sabedoria do mundo?”, pensava.

          Tôni convidou Sônia a visitar a fazenda no dia seguinte. Ela foi e adorou o passeio. Disse a Mireille que era um lugar bonito e que havia se divertido muito. Elogiou Tôni, classificando-o como “um verdadeiro cavalheiro”. Por fim, aconselhou a prima a conhecer melhor Ibrahim, que deveria ser igualmente agradável e simpático.

Com a insistência de Sônia, os quatro foram juntos à fazenda. Elas estavam completando quatro dias de retiro nas montanhas e começavam a se aborrecer com a monotonia do hotel, que parecia estar cada vez mais vazio. E os hóspedes que restavam pareciam ser os mais velhos. Até mesmo os drinques começavam a se tornar repetitivos... Ver um ambiente novo, mesmo que não fosse dos mais glamourosos, parecia ser algo providencial.

Assim que passaram pela porta da casa-sede, Ibrahim começou a falar sobre a história do imóvel, o passado da aldeia, a tradição poética do clã, as plantações, os quadros nas paredes, a criação de cavalos árabes, os antepassados... Era uma história longa, mas fascinante.

          -- Esses são meu bisavô Namen Bacha, meu avô Brahim e meu pai, Shahim –, dizia, enquanto apontava orgulhosamente para os quadros sobre a lareira.

          Mireille não poderia estar se sentindo mais entediada com todo aquele discurso. Quando Ibrahim começou a contar a história da espada que havia sido do bisavô dele e do brasão de família que havia sido do tataravô, Sônia começou a ficar desconfiada. De repente, puxou Mireille para um canto e disse baixinho:

          -- Não estou acreditando! O Tôni fez exatamente o mesmo discurso ontem, quando estive aqui! Até o mesmo pai eles têm? Mas como, se são primos? De quem são estas terras, afinal?

          “Agora chega!”, pensou Mireille. “Vou embora, chega dessa mentalidade provinciana, não suporto mais esse sujeito que acha que o mundo começa e termina nesta sala!” Mireille ficou ainda mais revoltada ao lembrar da reputação daquela família, tida como representante da nobreza e da intelectualidade local. Ela achava tudo aquilo muito boçal. No mundo de verdade, no mundo lá de fora, quem iria se importar com a nobreza de uma cidadezinha dentro de um país mixuruca de apenas 10.500 quilômetros quadrados?

          Ibrahim parecia estar captando os pensamentos de Mireille – até porque as expressões de raiva e desdém que ela fazia eram ótimos indícios. Só que, em vez de abreviar o discurso ufanista, ele demonstrava um prazer sádico ao prolongar a “tortura”.

-- E o que você esperava desses sujeitos? – disse Mireille, em voz alta, para Sônia. – Eles não têm mais nada para fazer do que inventar histórias e ficar catando esterco nesta fazenda. Vamos embora!

          Ibrahim apenas relatava o que havia ouvido desde pequeno e demonstrava o orgulho que tinha da história de sua família. Ele acreditava que a saga dos Malouf interessaria a qualquer pessoa, mas Mireille não se impressionava e, com seu temperamento tempestuoso, fazia questão de demonstrá-lo.

          Nem por isso ele desistiu de uma aproximação – aliás, era justamente o temperamento tempestuoso de Mireille que o atraía, tanto quanto sua beleza.  Ela era muito diferente das outras mulheres que havia conhecido, as moças “certinhas” e “casadoiras” das famílias tradicionais da região. Se na adolescência o comportamento fora do convencional de Mireille era algo chocante para Ibrahim, agora representava o contato com um universo novo, fascinante, o lado ocidental e debochado de Beirute.

          A capital libanesa vivia sua fase áurea. Era uma cidade próspera, requintada e de espírito livre. Naquele mesmo ano de 1961 estava sendo inaugurado o Hotel Phoenicia, que se tornaria um dos ícones da modernidade de Beirute. Seus doze andares, erguidos em frente ao Mar Mediterrâneo, eram repletos de cenários que lembravam os filmes de Hollywood. A cosmopolita Rua Hamra era outro ponto marcante da cidade, concentrando a vida intelectual em torno dos muitos pubs, cafés e teatros. 

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