Tempo De C Ver

DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

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 Capítulo - 1 -

 

Porto de Santos, Brasil, 1969.

          Malas, baús, caixotes e filas, muitas filas. Uma infinidade de mãos chacoalhando papéis no ar. Vozes ecoando palavras desconhecidas em línguas diversas, línguas de além-mar. Em meio à aparente alegria e excitação demonstrada por aquelas pessoas era fácil encontrar olhares perdidos ou mesmo assustados. Olhares que traduziam não apenas a insegurança em relação ao futuro, mas também o sentimento que iria assombrá-las pelo resto da vida: a nostalgia. Deixar a terra em que se nasceu não é uma decisão fácil. Naquele momento, contudo, o passado já não importava: tudo era futuro. E o futuro estava ali, naquele país de dimensões continentais.

          Além da imensidão da plataforma de desembarque (será que tudo no Brasil era grande assim?), o que logo chamou a atenção foi a umidade. Ao mesmo tempo em que a temperatura estava alta, havia uma brisa tão suave que parecia ter sido encomendada especialmente para refrescar o corpo e a alma de quem chegava. Era um tipo de calor diferente daquele do Líbano. Um calor úmido, que fazia transpirar por todos os poros. Então era a isso que chamavam de tropical? Que diferente era o Brasil!

          Destoando completamente da pequena multidão no cais, havia uma mulher trajada com um tailleur muito mais apropriado para o frio parisiense do que para o verão brasileiro. Ela estava convicta de que dezembro era e sempre seria mês de inverno, independente do hemisfério. Sua elegância jamais cederia ao calor dos trópicos. Por isso enfrentava aquele momento com seu inabalável porte altivo e elegante, sem dispensar os óculos Jackie O. e a maleta Hermès.

          Estática como se estivesse em estado de choque ao observar a cena ao redor, aquela mulher enfrentava uma mistura de sensações, da qual a mais forte era certamente o sentimento de perda. Para trás haviam ficado os anos dourados, em que viveu como verdadeira princesa. O jet set internacional era o terreno em que sabia se mover, e não um país subdesenvolvido como aquele em que acabara de desembarcar...

Por que não Londres, Paris ou Milão? Àquela altura, até o Texas parecia melhor negócio. Pena que o casamento com o norte-americano não tinha dado certo. Ah, sem falar que àquela altura ela poderia estar na Grécia, ao lado de seu maravilhoso ex-noivo Statis...

          Mudar-se para o Brasil era uma concessão que Mireille fazia ao homem que representava a sua quarta tentativa séria (deixemos de lado as não tão sérias) de manter uma relação longa, estável e feliz. Aos 17 anos, ela havia embarcado para os Estados Unidos com um quase desconhecido, mas que tinha os atributos necessários, por ordem de importância: bem sucedido, cosmopolita, bonito e inteligente. Com a vantagem adicional de que um não falava a língua do outro, o que evitaria os problemas de comunicação que tanto atrapalham os casais. Assim que ela aprendeu a falar inglês fluentemente, o casamento acabou.

          Aos 24 anos, ela conheceu um milanês e zupt!, foi experimentar a vida em mais um país. E a Itália era linda – além do mais, sempre é importante ter uma experiência européia no currículo. Não se pode afirmar que Mireille tentou com muito afinco estabelecer uma relação sólida. Era, na realidade, muito mais um caso de entressafra, enquanto não aparecia algo melhor. O que não demorou a acontecer, a propósito: eis que surge o grego, aquele deus... Pena que, como ela logo descobriria, ele também não era perfeito.

          Mireille não entendia porque era tão difícil encontrar o homem perfeito. O que ela desejava parecia tão pouco... Sucesso, beleza e inteligência eram pré-requisitos perfeitamente normais. Mas o principal atributo, aquele que ela valorizava de verdade, não podia ser mais simples: que o homem fizesse todas as suas vontades. Nesse ponto, parecia que ninguém jamais chegaria aos pés de seu pai, Zareh. É por isso que, a cada decepção amorosa, Mireille voltava correndo para os braços dele.

 

Zahle, Líbano, verão de 1961.

          Propositalmente escondida em um canto do piano-bar vazio, sufocada pela fumaça dos cigarros que acendia sem parar, Mireille pouco lembrava a mulher habituada a ser o centro das atenções por onde quer que fosse. No lugar do sorriso luminoso aparecia vez ou outra apenas um esboço protocolar, reconhecimento ao empenho da prima Sônia em tentar animá-la. Também quase não havia vestígio da sua “marca registrada”, o olhar que lhe dava um ar permanente de superioridade e suposto desinteresse pelo que acontecia ao redor, tal como uma diva de cinema entediada. Naquele momento, tudo o que Mireille deixava transparecer era tristeza.

Acabara de romper o terceiro casamento, antes mesmo de oficializá-lo. Como nas outras ocasiões, tomou a iniciativa. Desta vez, contudo, a separação veio acompanhada de uma sensação estranha, um vazio difícil de explicar. Um sentimento de incompetência que evoluía rapidamente para um estado de depressão. Aos 30 anos, seria o fantasma da solidão a assombrá-la?

O ex-noivo, um diplomata grego, a levara para viver em Atenas. Statis – assim ele se chamava – era o marido ideal: educado, com uma carreira promissora pela frente e, ainda por cima, fazia jus à tradição de beleza dos deuses helênicos, do alto de seus 1,90m. Com a data do casamento marcada, faltava apenas decidir onde morar. Foi nesse ponto, não mais que um mero detalhe entre todos os desafios que ameaçam o sucesso da vida a dois, que as coisas desandaram.

Acostumada pelo pai a ter tudo o que desejava, Mireille escolheu um apartamento grande e luxuoso. Mas Statis considerou que eles não precisavam de tanto nos primeiros anos, enquanto ainda não tivessem filhos, e tentou convencê-la a procurar um imóvel mais modesto. Como em tantas outras ocasiões, a reação foi de menina mimada: Mireille telefonou para o pai, aos prantos, e relatou sua decepção com o noivo.

O complacente Zareh falou exatamente o que não deveria naquele momento:

-- Não fique triste, filha. Eu compro o apartamento para vocês.

Obviamente, Statis não gostou da atitude da noiva e muito menos da intromissão do futuro sogro.

-- Se você pretende continuar pedindo ao seu pai para resolver os nossos problemas, para que casar? Melhor você continuar morando com ele!

Mireille era uma mulher autêntica, que se habituara desde cedo a falar o que pensava sem se preocupar com as conseqüências. Como nunca foi de engolir sapos, não deixou por menos:

-- Acho que você tem razão. Para que casar? – E saiu batendo a porta.

Foi assim que ela carimbou em mais um homem o rótulo de ex-príncipe encantado. Antes de Statis ela havida morado com o norte-americano e o italiano, além de affairs com um francês e dois libaneses. As amigas brincavam, com uma dose de maldade, que Mireille estava a caminho de ter ex-namorados em todos os continentes. Ou quem sabe em cada um dos países associados às Nações Unidas...

 

 

***

 

À mesa do piano-bar, enquanto fingia ouvir o que a amiga dizia, Mireille recriminava-se silenciosamente por ter recorrido a um subterfúgio tão primário e injusto para provocar o fim do relacionamento com Statis. Ela própria não conseguia entender a razão de agir daquela forma. É provável que tenha se assustado com a sensação de que tudo estava perfeito demais – até mesmo para alguém que se acostumou a ter todas as vontades realizadas sem esforço.

As cenas da discussão com Statis não saíam de sua memória. Mireille percebia claramente o quão injusta e infantil havia sido com o noivo. Não seria daquela vez, entretanto, que ela demonstraria arrependimento por um ato intempestivo. Pedir perdão? Jamais. O que está feito, está feito. Essa era a regra número um de Mireille. Ela nunca cedia, nem mesmo quando percebia ter cometido um erro.

Mireille estava finalmente se dando conta de que deixara de ser menina. Não tinha receio de envelhecer, de ficar feia – quem olhasse para ela logo se certificaria de que isso estava fora de cogitação. O que a deixava angustiada era o retrospecto da vida que levara até então. Preparou-se para ser a esposa ideal, mas ao mesmo tempo tinha pavor da rotina de um casamento. A idéia de iniciar uma família ao lado de um homem maravilhoso parecia agradável – e quem poderia ser melhor do que Statis? –, mas a hipótese de passar a ter compromissos, horários e responsabilidades era demasiado assustadora.

Um empecilho para que ela se submetesse às regras do casamento era sua auto-estima elevada: considerava-se uma pessoa especial, iluminada, abençoada, quase santificada. Desde a infância ouvia os outros dizerem isso, graças ao temperamento independente e desafiador que sempre demonstrara. Além do mais, nascera em 25 de dezembro, mesmo dia de Jesus Cristo – o que fez com que seus pais a batizassem com o sonoro nome de Mireille Noel.

Muitas vezes essa auto-estima foi sua aliada; às vezes, contudo, foi sua pior inimiga. Como no episódio com Statis. Em seus delírios românticos, Mireille imaginava que ele viria correndo pedir-lhe desculpas, exibindo a chave de um belíssimo e amplo apartamento para demonstrar o quanto a amava e o quanto a queria como esposa. Quando percebeu que o rompimento era definitivo, contudo, Mireille achou que era hora de refletir sobre a vida que levara até então e de pensar para valer no futuro.

É claro que ela só se lançaria a tão penoso exercício se pudesse fazê-lo em grande estilo. Decidiu então passar uma temporada no luxuoso Hotel Kadri, um cinco estrelas localizado nas montanhas da cidade de Zahle, conhecida como “a noiva do Líbano”.

Embora separadas por não mais que 50 quilômetros, Zahle e Beirute são cidades muito diferentes uma da outra. Localizada bem no centro geográfico do Líbano, em um vale cercado por duas grandes montanhas e dividida ao meio pelo rio Berdawni, Zahle manteve ao longo dos séculos o ar de vila, muito mais ligada à vida rural do que urbana. Os ambientes bucólicos conduzem naturalmente à contemplação – não por acaso a cidade já produziu dezenas de bons poetas.

Já a capital Beirute sempre foi muito mais cosmopolita, aberta às influências de outras culturas e povos. Nem poderia ser diferente para uma cidade tida ao longo dos séculos como o ponto de encontro de três continentes – Ásia, África e Europa –, condição que a levou a assumir naturalmente o papel de centro financeiro e político do país.

Erguido em uma região à beira do majestoso rio Berdawni, a 945 metros de altitude e a 40 quilômetros de Beirute, o Hotel Kadri era o ponto de encontro da alta sociedade durante a temporada de inverno.

Mas era verão, época em que as praias se tornavam o destino preferido dos libaneses endinheirados e o hotel ficava praticamente sem hóspedes. Em outros tempos, Mireille certamente não escolheria um lugar sem “platéia” para curar uma dor-de-cotovelo. Mas como naquele momento ela realmente não estava interessada em badalação, gostou da idéia de que não haveria quase ninguém por lá. No auge de sua depressão amorosa, pesando apenas 48 quilos e sem ânimo para freqüentar o circuito Elizabeth Arden, era melhor que fosse assim.

          No verão, Zahle voltava a pertencer plenamente aos libaneses árabes, aqueles que amavam a terra, a comida e especialmente a língua, na mais autêntica e antiga de suas formas. Era esse apego às tradições que tornava o lugar especialmente desinteressante para uma mulher como Mireille, educada nas melhores escolas francesas de Beirute, praticamente sem contato com o idioma e a história libaneses. Beirute era a “Suíça Oriental”, a “pérola do Oriente Médio”, e quem vinha de lá costumava ver Zahle não como um reduto de resistência cultural, mas como sinônimo de atraso e falta de charme.

          Mireille convidou Sônia, uma prima avoada e divertida, para acompanhá-la. Assim teria dois ingredientes essenciais para enfrentar qualquer crise existencial: um ombro amigo e uma paisagem belíssima a encantar os olhos. Deliciosamente ingênua, com expectativas bem mais humildes em relação à vida, Sônia era a companhia ideal. Prestava-se bem ao papel de confidente: ouvia com interesse as histórias da prima e dava conselhos.

          Não faltavam distrações na região, desde restaurantes célebres até as grandiosas ruínas de Baalbeck, remanescentes do Império Romano. Visitantes de todos os cantos do mundo faziam questão de tirar fotos sob as seis grandes colunas do Templo de Júpiter, com mais de 50 metros de altura. Havia ainda a riqueza histórica do próprio hotel Kadri. O prédio fora invadido em 1914 por Jamal Pacha, o Turco, que o transformou em quartel-general e hospital para seu exército, tratando funcionários e hóspedes com brutalidade. Foi também no hotel que, no dia 3 de agosto de 1920, o general Gouro anunciou a anexação do Líbano pela França, iniciando o protetorado proposto pelas Nações Unidas ao final da Primeira Guerra Mundial.

Poetas famosos como Ahmed Chawki produziram algumas de suas obras-primas hospedados em um dos 105 quartos do Kadri. O florescimento de dezenas de literatos de expressão ao longo do século XX levou Zahle a ser conhecida como “cidade dos poetas”. A produção de vinho era outro motivo de fama, já que o clima da região – com os cumes das montanhas cobertos de neve nos meses frios – favorecia o cultivo de uvas.

Apesar das várias possibilidades de passeio durante o dia, à noite não havia muitas alternativas de lazer para duas jovens sozinhas – nem ânimo de Mireille para aventuras do gênero. Assim, ela e Sônia invariavelmente desciam ao lobby do hotel para tomar um drinque antes de dormir.

Fora da temporada de inverno, raramente aparecia alguém diferente no Kadri. Certa noite, no entanto, dois homens bem vestidos entraram no piano-bar. Um deles Mireille conhecia desde criança, já que as famílias de ambos freqüentavam os mesmos lugares: era Ibrahim, um fazendeiro que ela, com sua educação francesa e vivência em vários países, considerava grosseiro e caipira.

Na adolescência, um dos passatempos prediletos de Mireille era satirizar os hábitos e atitudes dos jovens da região. Ibrahim, um ano mais velho, era um dos alvos prediletos. A jovem ria do bigodinho dele, das roupas, do sotaque pesado de árabe. Tamanha hostilidade não deixava de ser uma reação: filha de divorciados desde os dez anos, com hábitos excessivamente liberais como usar shorts e biquíni (os primeiros a chegar às lojas de Beirute), ela não era bem vista pelas famílias tradicionais da região. O fato de ter sido criada pelo pai, sem muito envolvimento da mãe, a transformava em um caso ainda mais peculiar. E esse pai era armênio – ou seja, um dos estrangeiros considerados “intrusos” pelos “verdadeiros donos” do Líbano.

          Mireille era, de fato, muito diferente das outras jovens. Seu comportamento não se enquadrava em qualquer padrão. Ela cultivava um evidente prazer em provocar e escandalizar. Não era apenas o jeito de se vestir, mas a forma como falava e, sobretudo, o que falava. Nunca escondeu suas opiniões sobre os outros e não tinha o menor problema em expressá-las. Franqueza sempre foi a mais reconhecida – e temida – de suas características. Quem convivesse com ela corria o risco de ouvir frases como “você está gorda”, “que vestido horrível” ou “teu marido tem outra” pronunciadas com a naturalidade de quem pede para passar o sal à mesa.

Mireille não agia dessa forma para parecer autêntica, independente ou forte, mas simplesmente porque, desde pequena, a autocensura não costumava passar pela sua mente. Ela muitas vezes agia como uma criança sem noção de limites. O que a transformava em alguém difícil de odiar é que também dizia frases positivas com a mesma naturalidade.

          Apesar do desprezo de Mireille, Ibrahim era um homem importante. Proprietário de uma das mais belas e produtivas fazendas da região, ele era chamado pelo título nobre de Bêik, descendente de Sheik. Na fazenda, que ocupava toda a aldeia de Kfardabach e tinha dezenas de empregados, cultivava olivas, cerejas e milho.

Ibrahim pertencia a uma família tradicional na região, os Malouf, cuja grafia original, Ma´yoof, passou por sucessivas atualizações. O clã vinha da antiga Arábia, como uma dissidência do clã Ghassani. O patriarca dos Malouf, Ibrahim Abu Raajeh Maloof Al Ghassani Al Horani, nasceu por volta de 1470. Cada um de seus sete filhos – Shadeed, Simão, Youssef, Nasser, Farah, Namen e Hanna – iniciou uma ramificação dos Malouf.

          Membros da família migraram para o Líbano, a Síria e a Palestina, lugares em que os Malouf passaram a ter grande influência. Tornaram-se governantes e estiveram à frente do poder por séculos. O título de Sheik chegara à família no século XVII, quando Kamal Mozer Malouf, um homem da política e das letras, foi com ele agraciado pelo emir Ahmad Maan, o último da dinastia Maan, substituída em 1697 pelos Shehab, após quase dois séculos no poder.

Junto com o título, Malouf recebeu o governo da região de Mouhaidsi. Os Malouf se dedicaram por gerações às letras, não somente no Líbano como em outros países. A família sempre foi repleta de poetas, alguns com versos recitados nas escolas libanesas, como era o caso de Shahim Maluf, pai de Ibrahim.

Muitos representantes da família saíram do Líbano entre os séculos XIX e XX, em face principalmente dos muitos conflitos ocorridos no Oriente Médio ao longo desse período. No Brasil, que se tornaria berço de novas gerações da família Malouf, as tradições ancestrais de envolvimento com as letras foram mantidas. Um dos periódicos que circulavam no país no início do século XX era o jornal Brasil, de Caesar Malouf. O jornal deixou de circular em 1914, mas o mesmo grupo de intelectuais que o produzia fundou, no dia 5 de janeiro de 1932, a Liga Andaluza de Letras Árabes, que passou a publicar a revista Al Usbat.

O presidente da Liga era Michel Maluf e vários outros membros da família (já com o nome simplificado para a grafia em português) participavam ativamente da instituição. Literatos como Fauze, Michel, Riad, Chafic e Nuhra Maluf tiveram obras publicadas no Brasil. Livros como Bissat Al Rih (1929) e Ibn Hamed (1950), de Fauze Maluf, e Al Ahlan (1929) e Akbar (1936), de Chafic Maluf, fizeram sucesso no Líbano e em vários países de emigração libanesa.

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