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DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

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 Capítulo - 8 -

Depois que Ibrahim voltou ao Brasil com Carol, suas brigas com Mireille continuavam alcançando um nível de dramaticidade que freqüentemente levavam Carol às lágrimas. Quando os dois se empenhavam em insultar um ao outro, esqueciam completamente que havia por perto uma criança e depois uma adolescente tentando amadurecer e entender a vida.

Ibrahim era capaz de chamar a mulher de “fútil” ou de “armênia” em tom de desprezo, enquanto Mireille – que demonstrava muito talento como provocadora e uma grande capacidade para ferir com a língua – dizia que se arrependia muito por não ter ficado com um dos maridos anteriores. Ou então falava mal da sogra, outro ponto sensível de Ibrahim.

Eram duas ou três horas ininterruptas de agressões verbais. Depois havia dois ou três dias de silêncio recíproco, até que, de repente, um dos dois puxava conversa e tudo ficava bem. Mas nenhum deles pensava em “discutir a relação”, como se diz hoje, e avaliar os motivos da briga para prevenir novas discussões. Quando tudo parecia calmo, outra discussão começava inesperadamente.

Às vezes, objetos voavam pelas janelas. Em uma ocasião, a TV foi arremessada por Ibrahim e arrebentou-se do lado de fora. No dia seguinte, sem falar nada, ele saiu de casa cedo e voltou com um novo aparelho. Os vizinhos, é claro, achavam aquele casal um tanto fora dos padrões, o que deixava Carol muito envergonhada.

No começo, a menina tentava fazer o papel de advogado de defesa do lado que ela julgava ter razão. Às vezes ficava do lado do pai, porque achava a mãe agressiva; outras vezes do lado da mãe, porque achava o pai intolerante.

Com o tempo, percebeu que os esforços de pacificação eram inócuos. Ela passou a interpretar as brigas como uma necessidade deles. É como se precisassem disso para se sentir vivos e reinventar a cada dia a relação entre duas pessoas muito diferentes uma da outra.

Na adolescência, Carol passou a ter plena convicção de que a mãe não conseguiria viver sem o pai e vice-versa. E que o erro de ambos talvez tenha sido o de casar achando que seriam capazes de mudar o outro.

As brigas eram desencadeadas por qualquer motivo, mas certamente a situação financeira continuava não ajudando muito. Com o desligamento de Ibrahim dos negócios da família, houve um período de instabilidade. Mireille não queria e não tentava ajudar – continuava a gastar como se nada tivesse mudado. Foi somente com o impulso dado pelo dinheiro da venda da fazenda aos novos empreendimentos de Ibrahim que a situação financeira da família voltou a ficar estável.

Inspirado pelos conhecimentos adquiridos com a mãe, grande colecionadora de jóias e objetos de arte, Ibrahim tornou-se perito avaliador de antiguidades e tapetes persas reconhecido oficialmente pelo estado de São Paulo. Passou a prestar serviços como marchand para os lares mais endinheirados. Importava do Oriente Médio terços antigos, conhecidos como masbahas, para vendê-los aos colecionadores que tinham dificuldades para encontrar essas jóias raras no Brasil. Construiu uma reputação invejável no meio e durante anos cercou a família de peças de arte belíssimas. Assim, Carol pôde conhecer um pouco da história da arte, dos objetos orientais, das jóias e mais adiante reconhecer cristais Lalique, louças Limoges, ovos Fabergé e pedras preciosas oriundas dos quatro cantos do mundo.

Mas os anos de dificuldades também deixaram marcas. Algumas seriam lembradas com humor pelo casal. Mireille e Ibrahim sempre foram fumantes inveterados e mesmo com a falta de dinheiro não deixaram o vício. Certa vez, quando Ibrahim não tinha no bolso mais do que o dinheiro para um maço de cigarros, foi comprar aquele que seria seu último refúgio de prazer em um momento de desesperança. À porta do bar da esquina, um vendedor de loteria insistiu para que ele comprasse um bilhete. De nada adiantava Ibrahim explicar que não tinha dinheiro: o homem insistiu tanto que convenceu Ibrahim a trocar o cigarro (embora estivesse louco por uma tragada) por um bilhete.

Quando chegou em casa sem os cigarros, Mireille – que também estava subindo pelas paredes com vontade de fumar – ficou possessa com a história contada por Ibrahim. A briga só terminou quando os dois, vencidos pelo cansaço, foram dormir. Quis o destino, contudo, que aquele bilhete fosse premiado, revertendo em um dinheiro suficiente para tirá-los do sufoco por alguns meses.

Para Ibrahim, aquela demonstração de sorte era a prova irrefutável de que a distinção oferecida ao seu tataravô pelo império turco era mesmo uma dádiva que iluminava seus descendentes. Já Mireille não sabia se ria ou chorava. Estava em dúvida se ter recebido aquele dinheiro inesperado compensaria ouvir mais uma vez a ladainha sobre a família de Ibrahim...

Mireille e Carol acharam que aquele era o momento ideal para pedir o que tanto desejavam: uma TV em cores, para que as duas assistissem juntas aos filmes que passavam de madrugada.

Numa dessas madrugadas, ao voltar de uma noitada de jogatina no Clube Zahle, Ibrahim apareceu com uma versão própria do tão esperado presente: uma película de acetato, do tamanho da tela do televisor, dividida em quatro cores: azul na parte de cima, laranja e amarelo no centro, e verde na parte inferior. Ibrahim instalou a película na tela e anunciou que aquela era a nova televisão colorida da casa... As duas caíram na gargalhada e abraçaram Ibrahim, enchendo-o de beijos. Sabiam que o dinheiro da loteria era bom, mas não suficiente para mudar drasticamente a situação em que viviam naquele momento.

Mireille limpava a película diariamente e Carol, ao vê-la cumprir a tarefa, entendia o quanto a mãe amava seu pai. Um ano depois, a família finalmente ganhou uma legítima TV colorida.

 

***

 

Apesar das dificuldades financeiras causadas pela guerra, o velho Zareh viajava com certa freqüência ao Brasil para visitar a filha, o genro e a neta. A primeira dessas visitas foi uma surpresa para comemorar os oito anos de Carol. Ao voltar da escola, no ônibus escolar, a empregada que a aguardava na calçada do prédio da Rua Cubatão disse à menina que o apartamento estava repleto de pessoas esperando por ela. Sem saber de quem se tratava, Carol entrou no apartamento e deu de cara não somente com seu avô Zareh, mas também com a avó Marie e o irmão do avô, Ara, sua esposa Mary e a filha Elise, prima temporã de Mireille.

Foi um período de muita felicidade para a família. Todos dormindo amontoados naquele pequeno apartamento, conversando até o amanhecer, passeando por São Paulo e levando Zareh cada dia a um restaurante diferente. O fato mais divertido é que Ibrahim tinha um Gordini, carro pequeno demais para tanta gente e sobretudo para o tamanho de Zareh. A primeira providência do pai de Mireille foi presentear Ibrahim com um carro muito maior, um Landau quatro portas, com capacidade para acomodar a todos.

Era uma família ruidosa e espaçosa, que não passava despercebida nos passeios a Guarujá, Santos e diversas localidades do interior do estado. Quando voltavam para casa, Carol e a prima ficavam horas namorando as bonecas da loja de brinquedos ao lado do prédio. A preferida de Carol era a Tippy, que até andava de bicicleta. Sabendo das dificuldades financeiras dos pais, no entanto, ela não se importava em ficar apenas imaginando as brincadeiras.

Ao longo daquelas inesquecíveis semanas, Zareh voltou a inventar estórias usando os dedinhos dos pés da neta como personagens. Carol dormia espremida entre os avós, feliz da vida. Ninguém tinha coragem de lembrar a ela que se tratava apenas de uma visita. Não tardou para que chegasse o inevitável momento da despedida. No aeroporto, a menina teve uma crise de choro e se agarrou ao paletó do avô. Gritava que aquilo era uma enorme injustiça, e que separá-la dele novamente era pior do que todos os ataques de asma que sofria.

-- Isso sim é como morrer!, gritava, com surpreendente grau de dramaticidade para uma menina de oito anos.

As pessoas que passavam pela fila de embarque se comoviam com a cena. E Carol aproveitava para pedir a cada uma delas que convencesse o avô a ficar para sempre.

Na visita seguinte ao Brasil, desta vez sozinho, Zareh percebeu que Carol já não era a mesma menininha que não desgrudava dele. Aos 13 anos, ela tinha outros interesses. Acabara de conhecer o primeiro namorado e preferia, naturalmente, a companhia do rapaz à do avô, por mais que o amasse.

 Quando Zareh partiu, Carol sentiu um aperto no coração parecido com aquele de quando deixou o amigo de infância esperando na porta do cinema. Achou que talvez o avô estivesse chateado com a forma menos calorosa com que agira durante essa visita dele ao Brasil. Como lhe ensinara a avó Marie, prometeu a si mesma que da próxima vez faria de tudo para corrigir o erro e voltar a ser a mesma neta carinhosa de sempre.

A oportunidade chegou três anos depois, em fevereiro de 1979. Carol estava ansiosa para rever o avô e restabelecer a relação nos moldes antigos. Zareh chegaria ao lado de Marie, que na velhice voltara a ser sua companheira inseparável. O casal decidira se mudar definitivamente para o Brasil, exatamente como Zareh prometera a Carol um dia. O velho engenheiro queria passar os últimos anos ao lado das três mulheres mais importantes de sua vida: a esposa, a filha e a neta.

Ibrahim, Mireille e Carol foram recebê-los no aeroporto de Viracopos, em Campinas. A expectativa era tanta que nenhum deles tinha conseguido dormir direito à noite. Haviam passado as semanas anteriores arrumando a nova casa, que Ibrahim decidiu alugar no bairro de Moema para receber melhor os sogros. Carol fez questão de ir ao cabeleireiro e alisar os agora longos e cacheados cabelos, só para que o avô a achasse bonita.

Partiram rumo a Campinas ainda antes de amanhecer, no velho Landau que haviam ganho de Zareh. No aeroporto, os três subiram ao andar de cima para visualizar a pista e acompanhar a chegada do Air France que trazia os visitantes.

Parecia que uma eternidade havia se passado até o momento em que o avião finalmente pousou em Viracopos. Assim que Zareh apareceu na porta e colocou os pés no primeiro degrau da escada, Marie, que vinha logo atrás, avistou a família e chamou a atenção do marido. Emocionado, Zareh olhou e acenou naquela direção, mas mal teve tempo de identificar a silhueta de sua amada neta entre as pessoas que acompanhavam o desembarque. Um ataque cardíaco fulminante o matou ali mesmo, momentos antes de pisar o solo brasileiro.

A figura dos avós na vida das crianças tem muito mais importância do que se imagina. Zareh dedicou à neta um amor incondicional. Foi diante dele que a menina pronunciou sua primeira palavra, Zozo, apelido pelo qual ela o chamaria pelo resto da vida, e escreveu sua primeira palavra, o próprio nome.

Foi com o avô que Carol aprendeu a contar até dez, a cantar em armênio, a sentar-se à mesa em um restaurante, comer corretamente, a não mentir, a chorar no colo de quem se confia, a desconfiar quando necessário, a amar a vida e a se resignar diante do fato que é possível continuar vivendo depois da morte de quem se ama.

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