Capítulo - 5 -
Como Ibrahim e Mireille não haviam sequer parado para pensar onde morariam depois da viagem ao Chipre, instalaram-se na casa de Zareh, que recebeu o genro de braços abertos. Ele sentia prazer em continuar dando todo o conforto à filha até que o genro – com quem ele havia de fato simpatizado – se estabelecesse plenamente por conta própria.
Viveram com o sogro pelos três anos seguintes, uma fase de felicidade para o casal. Ibrahim foi trabalhar no escritório de engenharia de Zareh, um dos mais bem conceituados do país. Passou a compartilhar a sua atividade de fazendeiro com o aprendizado da arte de construir prédios. Virou supervisor de obras, braço-direito e homem de confiança de Zareh.
As notícias sobre a nova vida de Ibrahim chegavam eventualmente à mãe e à irmã, que continuavam não reconhecendo Mireille como componente da família. Alguns parentes até tentavam amolecer o coração das duas, argumentando que Ibrahim parecia feliz e que, afinal de contas, Mireille não era tão má assim. Além de ser uma moça bela e simpática, desfrutava da estabilidade financeira proporcionada pelo pai.
Adibe decidiu então visitar o filho e a nora, que ela ainda não conhecia pessoalmente. Foi um grande – e mal sucedido – esforço de aproximação. Depois de presentear Mireille com um anel, um gesto surpreendentemente simpático, Adibe questionou o que os dois pretendiam fazer depois que a euforia dos primeiros tempos de casamento tivesse passado. Mireille respondeu que aquele tipo de preocupação dizia respeito somente a eles, pondo os nervos de ambas à flor da pele. O encontro prosseguiu falsamente cordial.
Um ano depois, Mireille engravidou. Ninguém ficou mais surpresa com a notícia do que ela própria. Os médicos haviam avisado que a possibilidade de ser mãe era baixa depois de ela ter perdido uma das trompas, ainda no primeiro casamento, decorrência de um aborto espontâneo provocado por uma gravidez tubária. Ibrahim recebeu a notícia com imensa alegria. Passou a divulgar a versão de que “sentiu” o momento exato em que se deu a concepção, como se estivesse iluminado por inspiração divina. Já a mãe dele reagiu com frieza e certa ironia quando soube da novidade por telefone, o que deixou Ibrahim magoado.
Superado o choque inicial, Mireille ficou verdadeiramente entusiasmada com a novidade. Depois de tudo o que ela enfrentara – a incerteza sobre o futuro e a sensação de que jamais constituiria uma família –, a gravidez era motivo de grande alegria. E também uma oportunidade para renovar completamente o guarda-roupa, claro.
Lá pelo sétimo mês de gestação, Mireille se deu conta de que o momento do parto estava se aproximando e isso a deixou angustiada. Passou a ser atormentada pela idéia de que não tinha saúde suficiente para resistir a um parto normal. De nada adiantaram as explicações do médico e a estatística a comprovar que o ato de parir se repetia diariamente, milhares de vezes mundo afora. Ela queria ter a certeza de que tudo daria certo, sem dor e sem sofrimento, e também de que sua silhueta não seria irremediavelmente afetada.
A partir da recomendação sabe-se lá de quem, ela decidiu trocar o médico que até então vinha acompanhando cuidadosamente a gravidez pela promessa de um parto “alternativo” oferecida por um norte-americano recém-chegado ao Líbano e instalado em uma bela e moderna clínica. Ele se dizia criador de um método para realizar partos não apenas sem dor nem sofrimento, mas com intenso prazer. Mireille foi à primeira consulta e ficou encantada com as promessas. A data do parto foi marcada, uma vez que o método previa a indução – afinal, para que submeter a mulher a contrações e outras sensações desagradáveis?
No dia 9 de janeiro de 1964, Mireille e Ibrahim foram recebidos na clínica por lindas enfermeiras, que mais pareciam atrizes de cinema. O quarto era digno de hotel cinco estrelas e nem os médicos pareciam médicos, tal a descontração do ambiente. Depois de jogar conversa fora e comer algumas frutas, ela foi sedada e logo em seguida teve algo introduzido em suas veias. Acordou em meio a alucinações, com a sensação de que havia baratas andando por seu corpo. Gritava desesperadamente. Mas o bebê já havia nascido, e, por sorte, saudável.
Seis meses depois, soube-se – pelas páginas policiais dos jornais – que o método “revolucionário” era a aplicação de algum tipo de substância lisérgica e que o médico era discípulo de Thomas Leary, o guru do LSD. A farsa foi desmascarada pela polícia e a clínica foi fechada, em um caso que teve muita repercussão no Líbano.
Em meio a essa confusão, uma menina veio ao mundo. Na hora de escolher o nome, mais uma vez Ibrahim e Mireille evidenciaram suas diferenças. Ele fazia questão de um nome árabe, que honrasse as tradições. Queria que a menina se chamasse Alia. Já Mireille defendia um nome universal, que não revelasse de imediato a origem da filha. Sugeriu Carol. Diante do impasse, a solução foi adotar os dois nomes: a menina se chamaria Alia Carol. Assim, cada um teria a oportunidade de chamá-la pelo nome predileto. No final das contas, a vitória acabou sendo de Mireille, já que, com o tempo, quase todo mundo adotaria a escolha da mãe.
Adibe esteve na clínica na noite do nascimento de Carol. Quando a enfermeira, uma libanesa, saiu da sala de parto para anunciar que a criança era uma menina, Adibe disse a Ibrahim:
-- Deus te ama, pois as filhas são para sempre e jamais te entristecem.
Era uma referência nada sutil à relação entre os dois, mãe e filho. O momento parecia apropriado para manifestações conciliadoras, mas Adibe preferiu mais uma vez a crítica. Era o tipo de atitude que revoltava Ibrahim.
***
Mireille adorou a tarefa de organizar o enxoval do bebê. Apreciava o lado glamouroso de ser mãe – e apenas esse. O “trabalho sujo”, como trocar a fralda, dar banho e preparar a papinha, ficava por conta da babá. Afinal, era muito mais divertido ficar com a menina apenas quando ela estava limpa, risonha e sem fome. Não fazia o gênero de Mireille conversar com o bebê com aquela voz enternecida, meio abobada. Para ela, devia-se conversar com crianças da mesma forma que se conversava com adultos, e ponto final.
Ninguém se mostrava mais modificado pela presença da pequena Carol do que o avô, Zareh. Ele não era, até então, reconhecido como uma pessoa afetuosa. Ao contrário, tinha fama de durão entre os subordinados. Mas com a menina se transformara completamente: era o avô dos sonhos de qualquer criança: brincalhão, disponível e carinhoso.
Zareh ensinou desde cedo a Carol que ser autêntico em todos os momentos da vida era o segredo se uma existência feliz, sem arrependimentos. Mireille herdara dele essa virtude, a falta de hipocrisia.
Quando Carol tinha três anos, ficou gravemente doente. Uma infecção intestinal mal controlada acabou se espalhando e a fez permanecer três meses no hospital, sob tratamento constante de antibióticos. A presença mais fiel ao lado do leito da pequena Carol, da internação ao dia da alta, foi justamente a do respeitado engenheiro Zareh. Naqueles momentos ele se lembrava da sua pequena Mireille, que contraíra tifo na infância e chegou a ser desenganada pelos médicos. Foi durante aqueles tempos difíceis que os cabelos de Zareh ficaram totalmente brancos para sempre – e ele tinha somente 35 anos.
Quando Carol tinha cinco anos, o avô estabeleceu uma rotina sagrada com a neta. Ele a pegava em casa às seis da manhã para levá-la ao colégio. No caminho, compravam dos vendedores ambulantes que ficavam nos semáforos o batom de manteiga de cacau que a menina tanto adorava. Às onze horas, ao final da aula, ele a buscava e os dois iam juntos comer castanhas assadas, se fosse inverno, ou comprar colares de jasmim para pendurar no pescoço da menina, se fosse verão.
Avô e neta iam almoçar juntos, em um restaurante à beira-mar, próximo ao escritório de Zareh. Ficavam conversando longamente, sobre muitos assuntos, enquanto observavam as ondas. Quando acabava o almoço, Zareh dava um dinheirinho à neta para que ela comprasse um brinquedo na loja ao lado do restaurante.
Depois levava a neta para o escritório. Ambientes corporativos podem ser aborrecidos para adultos, mas costumam ser fascinantes para crianças. Lá a menina se sentia o centro das atenções, uma verdadeira princesa. Sempre havia quem brincasse com ela, quem lhe desse papel e lápis coloridos e mostrasse algo novo e divertido.
Foi no escritório do avô que Carol aprendeu a ler e a contar, sentada na cadeira de trabalho de Zareh. Com o passar dos anos, a admiração da neta pelo avô só crescia. Ele sabia tantas coisas sobre tantos lugares e pessoas! E mesmo assim era capaz de virar criança para brincar com ela... Quantas e quantas vezes os dedinhos dos pés da pequena Carol foram transformados em personagens de estórias infantis, ocasiões em que Zareh a segurava delicadamente e narrava os contos mais lindos que brotavam de sua imaginação...
Apesar das muitas atribuições profissionais, Zareh não perdia a oportunidade de conviver com a neta. Depois da separação, ele até tivera algumas namoradas “oficiais”, mas o que realmente levava a sério era cuidar de Carol e aproveitar ao máximo a pequena companhia. Àquela altura, as discussões entre Ibrahim e Mireille já haviam se tornado freqüentes e o avô percebeu que seria importante salvar a neta daquele ambiente conturbado.
Ibrahim e Mireille brigavam por qualquer bobagem e, no calor da discussão, nenhum dos dois aliviava nas palavras. Depois tudo voltava ao normal, até a briga seguinte. Zareh logo percebeu que aquela relação não era das mais normais, mas, conhecendo bem a filha, admirava a paciência de Ibrahim. Os dois, sogro e genro, tinham uma ótima relação, de respeito e afeto mútuos.
O pai de Mireille, que cansara de conhecer os pretendentes, namorados e maridos da filha, via em Ibrahim um homem íntegro, talvez a última oportunidade para que Mireille finalmente entrasse nos trilhos. E Ibrahim havia encontrado em Zareh a figura paterna que lhe fazia muita falta desde a adolescência, quando o pai morreu.
Ibrahim crescera em um ambiente familiar pouco caloroso, especialmente após a morte do pai. Sua mãe não era dada a manifestações de carinho. Com a irmã, poucas vezes tivera um bom relacionamento. Certa vez, na infância, ela criticou o comportamento do irmão à mesa, afirmando que ele comia “como um porco”. Ibrahim respondeu que ela era de fato muito diferente, e que comia “como uma princesa”. Enquanto falava palavras tão gentis, segurou a cabeça da irmã com firmeza e a empurrou para dentro do prato de sopa.
A dedicação de Zareh à neta chegava a tal ponto que o pediatra da menina virou seu melhor amigo. Depois de ter criado Mireille com muitos mimos, ele aumentava ainda mais a dose com Carol. Assumiu sem pudor o papel de avô que não educa, apenas “estraga”. Em uma ocasião, a menina teve um pedido recusado por ele e não titubeou: correu ao quarto do avô, escolheu uma gravata, a encheu de talco, amassou bem e enfiou em um dos buracos do aquecedor. E o que fez Zareh ao descobrir a travessura? Deu uma gargalhada.
Quando não estava com o avô, Carol estava com a irmã caçula dele, Adline, alta executiva do porto de Beirute que nunca se casara – provavelmente por se dedicar demais à carreira. Nem por isso deixava de ter seus namorados e de se produzir. Passava horas se maquiando e preparando o cabelo. Adline também costumava levar a menina ao escritório, onde as secretárias a deixavam brincar com as máquinas de escrever.
Carol adorava passear de carro com o avô e o motorista, Omar, que o acompanhava havia muitos anos. Era uma relação divertida, que há muito deixara de ser simplesmente de patrão e empregado. Zareh era rigoroso no trato com os subordinados, mas o tempo de convívio havia concedido direitos especiais a Omar. Um implicava com o outro o tempo todo. Nos restaurantes, Omar sentava-se à mesa com Zareh, como velhos amigos que eram. A menina achava graça em tudo aquilo, especialmente em um estranho hábito de Omar: manter a unha do mindinho da mão direita crescida apenas para coçar ou limpar o ouvido, cacoete que repetia compulsivamente.
Um dia, Zareh levou a neta para ajudá-lo a escolher um novo carro. Ele valorizava o conforto por ser obeso, mas não se importava com detalhes de luxo. Só que um modelo com vidro elétrico havia acabado de chegar às lojas, e a neta adorou a brincadeira de subir e descer o vidro apenas apertando um botão. Era um acessório que encarecia significativamente o carro, mas diante da sentença de Carol – “quero este!” –, Zareh não hesitou em fechar o negócio.
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