Capítulo - 6 -
Carol tinha quatro anos quando Ibrahim começou a pressentir problemas no Líbano. A fazenda ficava próxima à Síria, e por conta disso ele tinha muitos contatos com muçulmanos vindos da fronteira. Conflitos de fundo religioso – sempre os mais difíceis de solucionar – estavam em ebulição no país.
Os turcos haviam dominado os árabes durante séculos. No século XVI, os maronitas e duas outras facções religiosas – os drusos e os xiitas – se refugiaram no Líbano para escapar de seus perseguidores. Em 1841, os otomanos tentaram controlar o Líbano, dando início a sangrentas guerras civis. Vinte anos depois, os turcos concederam a independência ao Líbano, acordo respaldado por sete potências da época: França, Inglaterra, Prússia, Rússia, Áustria, Hungria e Itália.
Uma nova constituição entrou em vigor em 1863, determinando a criação de um Conselho Supremo constituído por 12 membros distribuídos entre as facções religiosas do país. Mas o governador-geral deveria ser de credo cristão católico, aprovado pelas potências signatárias e com mandato de cinco anos. Assim, oito membros do clã Mutassarif governaram o Líbano entre 1861 e 1915. Foi nesse período que muitos libaneses desiludidos partiram para a emigração.
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o Líbano passou a ser colônia da França, condição que se prolongaria até 1943. Em 1926, a Constituição estabeleceu uma nova regra para a composição do poder no país: o presidente seria sempre um cristão maronita e o primeiro-ministro um muçulmano sunita.
No final dos anos 40, contudo, o Líbano recebeu 170.000 refugiados palestinos, vindos do território israelense. A chegada de tantos imigrantes fez a população muçulmana crescer subitamente e a levou a pleitear cargos mais importantes no governo, causando crescente tensão entre cristãos maronitas e muçulmanos.
Assim teve início uma nova guerra civil libanesa de origem religiosa. Em 1958, grupos muçulmanos se rebelaram contra o presidente maronita Camille Chamoun. Enquanto Chamoun era claramente alinhado aos Estados Unidos, os rebeldes tinham ligações com o regime soviético. As tropas norte-americanas invadiram o país e a crise foi temporariamente contornada com a substituição do presidente e o estabelecimento, mais uma vez, de novas regras para a composição do governo, criadas sob supervisão da Organização das Nações Unidas (ONU).
Embora os vários grupos religiosos do país estivessem representados no novo governo, logo afloraram as velhas divergências em relação ao poder de cada grupo. Uma nova leva de refugiados palestinos chegaria ao Líbano após o massacre na Jordânia que ficou conhecido como “Setembro Negro”, em 1970. A situação fugiu do controle quando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) instalou seu quartel-general em Beirute e passou a atacar Israel a partir do território libanês, gerando represálias israelenses.
Surgiu então o Partido Falangista, de extrema-direita, que pregava a expulsão dos palestinos. Esse partido logo contou com o apoio dos cristãos maronitas, interessados em preservar o poder em suas mãos. Do outro lado, jovens muçulmanos se organizavam em milícias, com apoio da OLP.
Juntando as peças do quebra-cabeça e vislumbrando o futuro tumultuado que o Líbano enfrentaria, Ibrahim achou que sair do país e tentar a vida em outro lugar seria uma boa idéia. O Brasil aparecia como primeira opção, não só porque ele já conhecia e tinha parentes no gigante sul-americano, mas também pelas boas possibilidades de se estabelecer como homem de negócios, exatamente como seu pai fizera.
Quando esteve no Brasil, Shahim uniu-se aos parentes em vários negócios, entre os quais uma tinturaria e uma grande tecelagem. Também virou sócio dos irmãos de Adibe, que produziam papel e papelão. Ibrahim planejava se inteirar desses negócios e começar a vida no Brasil trabalhando com a família.
Ele não precisou de muitos argumentos para deixar Mireille entusiasmada com a idéia da mudança para o exótico Brasil. Em primeiro lugar, porque ela sempre adorou novidades. Além disso, uma cartomante havia previsto, alguns anos antes, que ela viveria em um “grande país verde”. E essa cartomante tinha crédito, porque havia também previsto que Mireille se casaria com um estrangeiro que morava no Oriente Médio (o que havia ocorrido no relacionamento com Olen Webb). Havia, ainda, uma série de coincidências que ela passou a interpretar como “sinais”: o Hotel Kadri ficava na Brazil Street e a boate mais badalada de Beirute chamava-se Macumba, palavra cujo significado ela desconhecia, mas que tinha alguma relação com o Brasil.
E Mireille sabia que, se a aventura não desse certo, seu pai continuaria no Líbano pronto para recebê-la. Mudar para o Brasil era uma decisão que, afinal de contas, não envolvia grandes riscos.
E o Brasil parecia ser uma terra fascinante. As notícias que chegavam sobre o país construíram na mente de Mireille a imagem de um lugar cheio de glamour. Havia as praias, o carnaval, o Copacabana Palace, Tom Jobim, a Bossa Nova, Brasília, Búzios, o Cristo Redentor. Tudo isso reforçado por filmes que fizeram sucesso no mundo inteiro, como “Uma noite no Rio”, estrelado por Carmen Miranda e Don Ameche. O Brasil estava na moda; era o país do futuro.
Porto de Nápoles, Itália, 1969
-- Pai, quando vamos chegar na Itália?
-- Já chegamos! Aqui é a Itália!
-- Mas você disse que a Itália era diferente, cheia de música, igrejas coloridas e pombos na rua. Aqui é igual àquele lugar antes de a gente pegar o navio de novo.
-- Que lugar, filha? Portugal?
-- É pai, aquele lugar que é igual aquele outro que a gente foi antes dele.
-- Onde? A Espanha?
-- Acho que sim. É tudo igual, pai...
Naquele momento a menina sentiu-se triste e decepcionada. Ela esperava chegar ao país colorido e alegre que imaginara, mas já estava quase se dando por vencida. Todos os lugares pelos quais eles passavam eram escuros e velhos.
-- Pai, o lugar que você disse que vai me levar para morar também é desse jeito?
-- Filha, o lugar que escolhi você vai gostar, porque é muito diferente.
-- Quanto diferente?
-- Muito, muito diferente.
-- É? Diferente como?
-- É verde.
-- Todo verde? Bem verde?
-- Hum, hum.
-- Como é mesmo o nome do lugar?
-- Brasil. Brasil com “s”.
Depois de parar em dez diferentes portos ao longo dos dois meses de viagem, a família finalmente desembarcou no porto de Santos no dia 6 de dezembro de 1969. Já sabemos que o desencanto foi imediato para Mireille. Não apenas porque ela achou o porto imundo, com sujeira espalhada por todos os lados e as pessoas gritando feito malucas, mas também pelo calor infernal e úmido que fazia as roupas grudarem no corpo.
Ao tentar pedir informação para um guarda, Mireille ficou horrorizada com a forma grosseira como foi tratada. E houve ainda uma imensa dificuldade para encontrar a bagagem – que, segundo a declaração de bens registrada na embaixada brasileira em Beirute, incluía uma TV, um toca-discos, um jogo de talheres de prata, 15 copos de cristal, 8 quadros de pintura a óleo, uma espingarda de caça e um projetor de cinema.
Tudo transcorreu da pior forma possível naquele primeiro dia em território brasileiro. Mas pelo menos estavam em terra firme e Mireille não seria mais atormentada pelos enjôos que a acompanharam do início ao fim da longa viagem a bordo do Eugenio C., famoso navio da época.
Apesar dos enjôos de Mireille e dos chatíssimos treinamentos para naufrágio, no geral a viagem transcorrera bem. As exceções foram o dia em que Carol se perdeu dentro do navio durante algumas horas, para desespero especialmente de Ibrahim, e um outro em que ela precisou levar vários pontos no queixo depois de escorregar na piscina durante a festa de passagem pela Linha do Equador.
A recepção no Brasil estava por conta dos familiares de Ibrahim, e isso era um problema para Mireille. Como Adibe tinha grande influência sobre todos, a nora pressentia que não teria vida fácil.
Eles foram morar justamente na casa das irmãs de Adibe, em São Paulo. A sensação era a de estar cercada por quatro cópias da sogra – que, desde o primeiro dia, deixaram claro que iriam vigiá-la de perto. Afinal, tinham sido devidamente alertadas sobre o comportamento pouco convencional de Mireille. Mas a hóspede não deixava por menos e fazia de tudo para escandalizar as tias solteironas de Ibrahim. Nem era preciso muito esforço, diga-se de passagem.
Dois meses depois do desembarque, Mireille teve a oportunidade de presenciar o tão falado carnaval brasileiro – e constatar que suas atitudes “avançadas”, como os shorts que usava nos clubes e praias do Líbano, eram fichinha perto do que as brasileiras faziam naquela semana de festa.
Mireille considerava as brasileiras excessivamente descuidadas com a forma de se vestir, de se maquiar e de arrumar o cabelo. Achava as libanesas bem mais elegantes, enquanto julgava as brasileiras narcisistas.
-- Elas se acham as mais bonitas do mundo!, criticava.
Depois do primeiro ano, Ibrahim começou a se assentar melhor em São Paulo e o casal se mudou com a filha para um apartamento na Rua Cubatão, no Paraíso.
Bastou se livrar do convívio diário com as tias de Ibrahim para que Mireille começasse a simpatizar mais com o país. Em 1970, o Brasil foi tricampeão mundial de futebol e a euforia patriótica contagiou a família de imigrantes. Carol aprendeu a cantar refrões ufanistas, como “este é um país que vai pra frente” ou “90 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção!”.
Os desmandos da ditadura militar não apareciam para recém-chegados. Era como se não houvesse censura e repressão. Tudo o que se percebia era um país pujante, em franco desenvolvimento econômico.
Mireille adorava a Música Popular Brasileira, principalmente canções animadas como as de Jorge Ben: “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza...”. E havia frutas maravilhosas e exóticas como a jaca, que logo se tornou a preferida de Carol.
Em certos momentos, o glamour se aproximava ao do Líbano nos bons tempos. A entrada para o Guarujá não chegava a ser paga, como acontecia nas praias mais sofisticadas da região de Beirute, mas era comum encontrar, no balneário paulista, mulheres superproduzidas, maquiadas e cheias de jóias caminhando na faixa de areia como se estivessem nas calçadas de Saint Tropez.
Um dos locais mais conhecidos do Guarujá é chamado até hoje de Morro do Maluf, homenagem a Edmond Maluf, primo-irmão de Shahim que ganhou muito dinheiro fazendo investimentos no Brasil. Era um homem livre, de comportamento avançado e muito moderno para a sociedade da época. Adorava organizar festas na casa que construiu no alto do morro, marco divisório entre as praias de Pitangueiras e da Enseada. Festas tão luxuosas que as taças de cristal eram jogadas na lareira apenas por celebração. Conta a lenda que todas as mulheres convidadas para as festas de Edmond eram recebidas com uma orquídea – e que, em alguns casos, a flor era acompanhada por uma bela jóia. No final dos anos 40, contudo, os negócios já não iam tão bem e o playboy se endividou. Sem ter como realizar o projeto de um condomínio de luxo, deixou o morro como pagamento para um dos credores e mudou-se para a Europa. Amigos e familiares sentiram falta daquele homem que representava o Líbano moderno e sofisticado, faceta que a maioria dos brasileiros desconhecia – a imagem dos libaneses era cada vez mais associada à dos comerciantes e mascates satirizados nos programas humorísticos, um Líbano que se reduzia à Rua 25 de Março, o mais conhecido centro de comércio em São Paulo. *** Logo nos primeiros tempos no Brasil, Ibrahim começou a ocupar o espaço deixado por Zareh no coração de Carol. Era ele quem a acompanhava na escola e ajudava na lição de casa. Mireille não se interessava por nada disso. Assuntos do cotidiano, como ir ao supermercado e pagar contas, jamais lhe despertaram interesse.
Ibrahim até assumia tarefas normalmente consideradas femininas, como confeccionar fantasias para festas escolares e apresentações artísticas. Certa vez, a escola enviou aos pais uma carta dizendo que todas as crianças deveriam ir vestidas de anjo para uma apresentação teatral. As mães começaram a se dedicar, então, a preparar as fantasias dos filhos e filhas. Compraram os tecidos, os enfeites e logo partiram para o trabalho na máquina de costura. Mireille, contudo, não se interessou nem um pouco pela tarefa, que considerava “uma chatice”. O trabalho acabou sobrando para Ibrahim.
A visão de um homem sobre uma fantasia de anjo para ser usada na escola é muito diferente da visão feminina. Ibrahim achou que bastaria ir a uma papelaria, comprar uma cartolina, recortá-la em formato de asas, grampear o que fosse preciso e colar o conjunto, com fita adesiva, nas costas da menina. Tudo com a praticidade tipicamente masculina.
No dia da apresentação, Carol, com sua fantasia de cartolina, deparou-se com as colegas superproduzidas, com fantasias cor-de-rosa cheias de brilhos, babados e organzas – algumas tinham até asas com penas de verdade! Para piorar, a fita adesiva improvisada por Ibrahim desgrudou no meio da apresentação e a fantasia de Carol despencou, obrigando-a a juntá-la do chão e seguir até o fim segurando-a desajeitadamente. Na platéia, Mireille aplaudia tudo com entusiasmo e parecia não perceber o constrangimento da filha.
Como cabelo de menina costuma dar muito trabalho para a mãe, Mireille optou por um corte curto para Carol desde que ela era pequena. Só bem mais tarde, por volta dos 15 anos, a menina teve a chance de deixá-lo crescer. Mireille argumentava que Coco Chanel, ícone máximo para as mulheres da época, certamente aprovaria o corte à la garçonne.
-- Essas meninas de cabelos longos são um bando de lagartixas oleosas, vivia repetindo.
Um dia, triste por não ter tranças como as amigas do colégio, Carol caiu no choro. Mireille logo encontrou uma solução: comprou uma peruca com um belo rabo-de-cavalo. No dia seguinte, Carol apareceu na aula com aquele estranho adereço, para estupefação das colegas e professoras.
O envolvimento materno de Mireille era totalmente fora dos padrões. Houve uma ocasião em que ela decidiu participar da preparação de uma apresentação teatral da filha na escola, mas foi basicamente por interesse próprio. As crianças podiam se vestir livremente para o espetáculo, e se havia algo de que Mireille gostava e entendia era de moda.
Em vez de levar a menina à loja para escolher o tecido, Mireille fez tudo sozinha, com base no próprio gosto. Assim, enquanto as outras se apresentaram com roupas tipicamente de criança – vestidos cor-de-rosa, floridos etc –, Carol subiu ao palco com um vestido quadriculado de preto e branco (pied-de-poule, diria Mireille), acompanhado por um chapéu preto. Era a última moda, sem dúvida. Carol estava muito chique... Para os padrões de uma balzaquiana. Tudo o que a menina desejava naquele momento, contudo, era ter um vestidinho cor-de-rosa como as colegas.
Mireille considerava absurdo o comportamento das mães que queriam saber o tempo todo das professoras como os filhos estavam se saindo.
-- A escola sabe o que faz, não precisa dar satisfações.
Achava, também, que os estudos não precisavam ser levados muito a sério. Bastava passar de ano. Nada de ser a primeira da classe: importante era ser feliz. Quando opinava sobre a escola ideal para a filha, Mireille dizia apenas que a menina devia ser preparada para viver em qualquer lugar do mundo e se relacionar com pessoas de qualquer procedência. Tratava-se da mesma preocupação que demonstrara ao insistir para que a menina tivesse um nome universal. Havia nessa forma de ver o mundo a influência da infância em um país árabe como o Líbano, repleto de manifestações, veladas ou explícitas, de intolerância. Nesse ponto a opinião de Mireille foi levada em conta, já que, assim que a família chegou ao Brasil, Carol foi matriculada em um colégio inglês, o Saint Paul’s.
A importância concedida ao conhecimento formal era mais uma grande diferença entre Mireille e Ibrahim. Ele adorava matemática a ponto de lançar-se a exercícios de cálculo como mero passatempo. Era apaixonado também por história – guardava centenas de datas e nomes graças à prodigiosa memória. Certa vez, quando um funcionário da companhia telefônica informou que o novo número da casa seria 815-3945, Ibrahim comentou com o rapaz que seria fácil de memorizar graças à Segunda Guerra (1939 foi o ano em que a guerra começou e 1945 o ano em que o conflito terminou). É claro que o interlocutor não entendeu nada e saiu de lá achando aquele “turco” meio maluco.
Mireille não só deixava de acompanhar o marido nas elucubrações intelectuais como não demonstrava especial admiração pelos conhecimentos e pela capacidade de raciocínio de Ibrahim, o que o deixava magoado. Não foram poucas às vezes que, em meio às discussões, embaladas por Chopin ou Vivaldi a toda altura, ele a acusou de futilidade, de só se interessar pelas coisas superficiais da vida. Ela nem ficava muito irritada, provavelmente por reconhecer que ele tivesse uma boa dose de razão. Mas essa razão em nada mudava os fatos da vida. Quantos haviam filosofado sobre o homem e o mundo e morreram desiludidos ao constatar que não conseguiram mudar o destino da humanidade?
Ibrahim tentava conduzir a pequena Carol por um caminho menos “alienado”. Às vezes ficava entusiasmado ao perceber o interesse da filha por fatos e personagens do passado, que ele se esforçava para apresentar de forma lúdica, como se fossem protagonistas de histórias cheias de aventura. Outras vezes, ao perceber a dificuldade da filha para entender um exercício de matemática ou aprender a jogar xadrez, ele se conformava: afinal de contas, a menina também era filha de Mireille!
***
Carol havia se acostumado, desde pequena, a viver naquele ambiente pitoresco que era a casa dela. E logo aprendeu que não havia o que questionar, muito menos do que reclamar. Precisava aceitar os pais como eles eram.
Na cabeça da menina, qualquer sinal de revolta que ela viesse a demonstrar agravaria ainda mais uma situação que já era delicada. Os pais discutiam muito, às vezes violentamente. Carol se sentia responsável pela tarefa de buscar a harmonia da família. Para isso era preciso agir com passividade, evitando ser mais um foco de conflito.
O jeito de ser de Ibrahim e Mireille trazia muitos momentos de embaraço e constrangimento, especialmente na infância, mas em outras ocasiões era também motivo de orgulho. Na adolescência, a forma franca e aberta como Mireille se dirigia à filha, inclusive na frente das colegas, era algo que Carol apreciava.
Enquanto as outras meninas enfrentavam os problemas típicos da adolescência, muitas vezes provocados pela falta de comunicação com os pais, disso Carol não podia se queixar. As amigas invejavam o relacionamento dela com a mãe, além do companheirismo que demonstrava ter com o pai. Todos acreditavam que a vida na casa de Carol era muito divertida, mas em muitos momentos a menina chegava a ter certeza que os pais eram malucos de verdade.
Uma das formas que Mireille encontrou para suportar melhor a vida longe do Líbano foi buscar uma “tribo” com a qual se identificasse. Ibrahim se satisfazia em freqüentar o Clube de Zahle, que reunia imigrantes oriundos da mesma cidade que ele. No clube havia jogos de carta praticamente todas as noites, e almoços em família nos finais de semana.
Tudo isso era monotonia demais para Mireille. Depois do primeiro ano no Brasil, em que teve que conviver com a vigilância das tias solteironas de Ibrahim, ela se sentiu livre para sair à noite, uma de suas paixões. No prédio da Rua Cubatão para o qual havia se mudado, conheceu uma mulher que se tornaria sua grande amiga e companheira de badalações, Neném, divorciada e mãe de duas filhas. Mireille tornou-se amiga dos amigos de Neném, a maior parte músicos e boêmios, e passou a freqüentar casas noturnas com esse grupo.
Mireille levava a filha para a noite, como se Carol fosse mais uma de suas amigas adultas, e não uma criança com dez anos de idade. E a menina adorava, claro. Um dos lugares prediletos do grupo era o Oba Oba, onde Sargentelli costumava se apresentar com suas mulatas. Enquanto Mireille jogava conversa fora com os amigos, a filha brincava com as filhas de Neném, que tinham a mesma faixa de idade e também eram levadas pela mãe. Elas tomavam sorvete, ficavam desenhando e batiam papo com os garçons ou as “profissionais da noite” que freqüentavam o lugar. A influência daqueles tempos foi tão forte nas crianças que Clara, a filha mais velha de Neném, se tornaria dançarina profissional de samba, fazendo carreira internacional na Itália.
As saídas noturnas de mãe e filha, juntas, se estenderam por anos, tanto que o aniversário de 15 anos de Carol foi celebrado no bar e restaurante A Baiúca, com Cauby Peixoto cantando e seu irmão tocando piano especialmente para ela.
Enquanto isso, Ibrahim fazia seus programas com a colônia libanesa. Jamais foi ao A Baiúca e nunca cogitou a hipótese de acompanhar a mulher em uma das noitadas. Tanto ele como Mireille encaravam as diferenças de interesse como absolutamente naturais e não manifestavam qualquer discordância sobre a opção de fazer programas noturnos separados, apesar da estranheza que a ausência do outro causava nos respectivos círculos sociais.
Cada um gostava de cultivar relacionamentos próprios, com os quais sentissem afinidades pessoais – não havia amigos “do casal”. Ambos estavam cientes de que essa situação poderia abrir espaço para o interesse por outros homens ou mulheres, mas ciúmes, surpreendentemente, nunca foi motivo de brigas entre Mireille e Ibrahim. Eles eram capazes de brigar por qualquer outra razão, menos essa. Ao menos é o que parecia.
Ibrahim permitia que a filha acompanhasse a mãe possivelmente porque seria um empecilho para que ela se envolvesse com outro homem, mas não apenas por isso: no fundo ele sempre admirou a leveza com que Mireille encarava a vida e gostaria que a filha herdasse (em parte, é claro) essa característica, que não identificava em si. Mireille representava muito do que Ibrahim não pôde ser, pelos padrões de sua criação. Ele queria que a filha tivesse acesso a tudo o que ele não teve. E de fato, graças à mãe, Carol tinha a oportunidade de freqüentar lugares que suas amigas de colégio nem imaginavam que existissem.
Os ambientes não eram dos mais saudáveis para uma criança, mas a menina nem desconfiava que aquilo pudesse ser chamado de “inadequado”. Essas experiências certamente contribuíram para que Carol crescesse sem preconceitos, tolerante em relação às diferenças do mundo. As profissionais do sexo que freqüentavam o A Baiúca eram, para ela, apenas mulheres divertidas e bem arrumadas. O que faziam para ganhar a vida não importava – afinal, esse tipo de preocupação ainda não fazia parte dos problemas da infância.
Problema, isso sim, era acordar cedo no dia seguinte para ir à escola. Mas Carol disfarçava bem e conseguia esconder sua vida paralela de freqüentadora da noite. As professoras nem chegavam a desconfiar.
A menina adorava quando chegava com a mãe das aventuras noturnas e as duas preparavam sanduíches gigantes, ligavam a TV e assistiam um daqueles filmes B de terror que costumavam passar de madrugada. Muitas vezes, Ibrahim chegava de seus programas quase ao mesmo tempo, se juntava a elas e contava todas as fofocas do clube – quem havia brigado, quem tinha perdido no jogo etc. A conversa em frente à TV freqüentemente ia até o amanhecer.
Em momentos como esse, Carol tinha certeza de que, apesar de tudo, seus pais se amavam muito. Como poderia pensar diferente se, a cada Dia das Mães, Ibrahim fazia questão de acordar a filha bem cedo e sair com ela para percorrer brechós, livrarias, lojas de discos e voltar com o porta-malas do carro repleto de presentes para Mireille?
Esses eram os pequenos momentos de “loucura” consumista de Ibrahim. Já Mireille costumava nem olhar o preço daquilo que gostava. A forma como ela lidava com o dinheiro passou a ser uma das fontes mais constantes de desentendimentos com Ibrahim depois que eles se mudaram para o Brasil. No Líbano o problema não se manifestara tão intensamente, porque havia a segurança financeira proporcionada por Zareh. Mal acostumada pelo pai, Mireille nunca se habituou a economizar, a planejar uma compra, a informar-se sobre a situação financeira em casa antes de assinar um cheque. Com o natural aumento dos gastos em decorrência do nascimento de Carol e da mudança para um país diferente, essa característica de Mireille passou a incomodar ainda mais a Ibrahim.
-- Precisamos guardar dinheiro para ter uma casa, pagar a escola da nossa filha! – ele esbravejava.
Ibrahim vivia em constante dilema, entretanto, porque nada lhe dava mais prazer do que agradar à mulher. Mas ele detestava a mania dela de ficar emburrada, tal qual uma criança, quando pedia algo e não ganhava.
Problemas financeiros à parte, ambos eram muito generosos com os outros – parentes, amigos, simples conhecidos ou até mesmo desconhecidos. Caso simbólico era o de Eddie, um amigo de Ibrahim que não tinha um tostão e nem sequer onde morar. As namoradas lhe davam guarida eventualmente, mas nos períodos de entressafra ele recorria aos amigos. Um dos abrigos mais freqüentes em Beirute era a casa de Ibrahim, mesmo depois de casado.
Algum tempo depois da mudança para São Paulo, Ibrahim e Mireille foram surpreendidos com a visita de Eddie, que também havia decidido se aventurar no Brasil (onde, é claro, não tinha onde ficar). Como sempre, Ibrahim o recebeu pelo tempo necessário – meses a fio...
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