Tempo De C Ver

DESTINOS DESLOCADOS por Carol Maluf

Capítulos:     1   2   3   4   5   6   7   8   9   10   Agradecimentos

 ***

 

Porto de Santos, Brasil, 1969.

          Malas, baús, caixotes e filas, muitas filas. Uma infinidade de mãos chacoalhando papéis no ar. Vozes ecoando palavras desconhecidas em línguas diversas, línguas de além-mar. Em meio à aparente alegria e excitação demonstrada por aquelas pessoas era fácil encontrar olhares perdidos ou mesmo assustados. Olhares que traduziam não apenas a insegurança em relação ao futuro, mas também o sentimento que iria assombrá-las pelo resto da vida: a nostalgia. Deixar a terra em que se nasceu não é uma decisão fácil. Naquele momento, contudo, o passado já não importava: tudo era futuro. E o futuro estava ali, naquele país de dimensões continentais.

          Além da imensidão da plataforma de desembarque (será que tudo no Brasil era grande assim?), o que logo chamou a atenção foi a umidade. Ao mesmo tempo em que a temperatura estava alta, havia uma brisa tão suave que parecia ter sido encomendada especialmente para refrescar o corpo e a alma de quem chegava. Era um tipo de calor diferente daquele do Líbano. Um calor úmido, que fazia transpirar por todos os poros. Então era a isso que chamavam de tropical? Que diferente era o Brasil!

          Destoando completamente da pequena multidão no cais, havia uma mulher trajada com um tailleur muito mais apropriado para o frio parisiense do que para o verão brasileiro. Ela estava convicta de que dezembro era e sempre seria mês de inverno, independente do hemisfério. Sua elegância jamais cederia ao calor dos trópicos. Por isso enfrentava aquele momento com seu inabalável porte altivo e elegante, sem dispensar os óculos Jackie O. e a maleta Hermès.

          Estática como se estivesse em estado de choque ao observar a cena ao redor, aquela mulher enfrentava uma mistura de sensações, da qual a mais forte era certamente o sentimento de perda. Para trás haviam ficado os anos dourados, em que viveu como verdadeira princesa. O jet set internacional era o terreno em que sabia se mover, e não um país subdesenvolvido como aquele em que acabara de desembarcar...

Por que não Londres, Paris ou Milão? Àquela altura, até o Texas parecia melhor negócio. Pena que o casamento com o norte-americano não tinha dado certo. Ah, sem falar que àquela altura ela poderia estar na Grécia, ao lado de seu maravilhoso ex-noivo Statis...

          Mudar-se para o Brasil era uma concessão que Mireille fazia ao homem que representava a sua quarta tentativa séria (deixemos de lado as não tão sérias) de manter uma relação longa, estável e feliz. Aos 17 anos, ela havia embarcado para os Estados Unidos com um quase desconhecido, mas que tinha os atributos necessários, por ordem de importância: bem sucedido, cosmopolita, bonito e inteligente. Com a vantagem adicional de que um não falava a língua do outro, o que evitaria os problemas de comunicação que tanto atrapalham os casais. Assim que ela aprendeu a falar inglês fluentemente, o casamento acabou.

          Aos 24 anos, ela conheceu um milanês e zupt!, foi experimentar a vida em mais um país. E a Itália era linda – além do mais, sempre é importante ter uma experiência européia no currículo. Não se pode afirmar que Mireille tentou com muito afinco estabelecer uma relação sólida. Era, na realidade, muito mais um caso de entressafra, enquanto não aparecia algo melhor. O que não demorou a acontecer, a propósito: eis que surge o grego, aquele deus... Pena que, como ela logo descobriria, ele também não era perfeito.

          Mireille não entendia porque era tão difícil encontrar o homem perfeito. O que ela desejava parecia tão pouco... Sucesso, beleza e inteligência eram pré-requisitos perfeitamente normais. Mas o principal atributo, aquele que ela valorizava de verdade, não podia ser mais simples: que o homem fizesse todas as suas vontades. Nesse ponto, parecia que ninguém jamais chegaria aos pés de seu pai, Zareh. É por isso que, a cada decepção amorosa, Mireille voltava correndo para os braços dele.

 

Zahle, Líbano, verão de 1961.

          Propositalmente escondida em um canto do piano-bar vazio, sufocada pela fumaça dos cigarros que acendia sem parar, Mireille pouco lembrava a mulher habituada a ser o centro das atenções por onde quer que fosse. No lugar do sorriso luminoso aparecia vez ou outra apenas um esboço protocolar, reconhecimento ao empenho da prima Sônia em tentar animá-la. Também quase não havia vestígio da sua “marca registrada”, o olhar que lhe dava um ar permanente de superioridade e suposto desinteresse pelo que acontecia ao redor, tal como uma diva de cinema entediada. Naquele momento, tudo o que Mireille deixava transparecer era tristeza.

Acabara de romper o terceiro casamento, antes mesmo de oficializá-lo. Como nas outras ocasiões, tomou a iniciativa. Desta vez, contudo, a separação veio acompanhada de uma sensação estranha, um vazio difícil de explicar. Um sentimento de incompetência que evoluía rapidamente para um estado de depressão. Aos 30 anos, seria o fantasma da solidão a assombrá-la?

O ex-noivo, um diplomata grego, a levara para viver em Atenas. Statis – assim ele se chamava – era o marido ideal: educado, com uma carreira promissora pela frente e, ainda por cima, fazia jus à tradição de beleza dos deuses helênicos, do alto de seus 1,90m. Com a data do casamento marcada, faltava apenas decidir onde morar. Foi nesse ponto, não mais que um mero detalhe entre todos os desafios que ameaçam o sucesso da vida a dois, que as coisas desandaram.

Acostumada pelo pai a ter tudo o que desejava, Mireille escolheu um apartamento grande e luxuoso. Mas Statis considerou que eles não precisavam de tanto nos primeiros anos, enquanto ainda não tivessem filhos, e tentou convencê-la a procurar um imóvel mais modesto. Como em tantas outras ocasiões, a reação foi de menina mimada: Mireille telefonou para o pai, aos prantos, e relatou sua decepção com o noivo.

O complacente Zareh falou exatamente o que não deveria naquele momento:

-- Não fique triste, filha. Eu compro o apartamento para vocês.

Obviamente, Statis não gostou da atitude da noiva e muito menos da intromissão do futuro sogro.

-- Se você pretende continuar pedindo ao seu pai para resolver os nossos problemas, para que casar? Melhor você continuar morando com ele!

Mireille era uma mulher autêntica, que se habituara desde cedo a falar o que pensava sem se preocupar com as conseqüências. Como nunca foi de engolir sapos, não deixou por menos:

-- Acho que você tem razão. Para que casar? – E saiu batendo a porta.

Foi assim que ela carimbou em mais um homem o rótulo de ex-príncipe encantado. Antes de Statis ela havida morado com o norte-americano e o italiano, além de affairs com um francês e dois libaneses. As amigas brincavam, com uma dose de maldade, que Mireille estava a caminho de ter ex-namorados em todos os continentes. Ou quem sabe em cada um dos países associados às Nações Unidas...

 

 

***

 

À mesa do piano-bar, enquanto fingia ouvir o que a amiga dizia, Mireille recriminava-se silenciosamente por ter recorrido a um subterfúgio tão primário e injusto para provocar o fim do relacionamento com Statis. Ela própria não conseguia entender a razão de agir daquela forma. É provável que tenha se assustado com a sensação de que tudo estava perfeito demais – até mesmo para alguém que se acostumou a ter todas as vontades realizadas sem esforço.

As cenas da discussão com Statis não saíam de sua memória. Mireille percebia claramente o quão injusta e infantil havia sido com o noivo. Não seria daquela vez, entretanto, que ela demonstraria arrependimento por um ato intempestivo. Pedir perdão? Jamais. O que está feito, está feito. Essa era a regra número um de Mireille. Ela nunca cedia, nem mesmo quando percebia ter cometido um erro.

Mireille estava finalmente se dando conta de que deixara de ser menina. Não tinha receio de envelhecer, de ficar feia – quem olhasse para ela logo se certificaria de que isso estava fora de cogitação. O que a deixava angustiada era o retrospecto da vida que levara até então. Preparou-se para ser a esposa ideal, mas ao mesmo tempo tinha pavor da rotina de um casamento. A idéia de iniciar uma família ao lado de um homem maravilhoso parecia agradável – e quem poderia ser melhor do que Statis? –, mas a hipótese de passar a ter compromissos, horários e responsabilidades era demasiado assustadora.

Um empecilho para que ela se submetesse às regras do casamento era sua auto-estima elevada: considerava-se uma pessoa especial, iluminada, abençoada, quase santificada. Desde a infância ouvia os outros dizerem isso, graças ao temperamento independente e desafiador que sempre demonstrara. Além do mais, nascera em 25 de dezembro, mesmo dia de Jesus Cristo – o que fez com que seus pais a batizassem com o sonoro nome de Mireille Noel.

Muitas vezes essa auto-estima foi sua aliada; às vezes, contudo, foi sua pior inimiga. Como no episódio com Statis. Em seus delírios românticos, Mireille imaginava que ele viria correndo pedir-lhe desculpas, exibindo a chave de um belíssimo e amplo apartamento para demonstrar o quanto a amava e o quanto a queria como esposa. Quando percebeu que o rompimento era definitivo, contudo, Mireille achou que era hora de refletir sobre a vida que levara até então e de pensar para valer no futuro.

É claro que ela só se lançaria a tão penoso exercício se pudesse fazê-lo em grande estilo. Decidiu então passar uma temporada no luxuoso Hotel Kadri, um cinco estrelas localizado nas montanhas da cidade de Zahle, conhecida como “a noiva do Líbano”.

Embora separadas por não mais que 50 quilômetros, Zahle e Beirute são cidades muito diferentes uma da outra. Localizada bem no centro geográfico do Líbano, em um vale cercado por duas grandes montanhas e dividida ao meio pelo rio Berdawni, Zahle manteve ao longo dos séculos o ar de vila, muito mais ligada à vida rural do que urbana. Os ambientes bucólicos conduzem naturalmente à contemplação – não por acaso a cidade já produziu dezenas de bons poetas.

Já a capital Beirute sempre foi muito mais cosmopolita, aberta às influências de outras culturas e povos. Nem poderia ser diferente para uma cidade tida ao longo dos séculos como o ponto de encontro de três continentes – Ásia, África e Europa –, condição que a levou a assumir naturalmente o papel de centro financeiro e político do país.

Erguido em uma região à beira do majestoso rio Berdawni, a 945 metros de altitude e a 40 quilômetros de Beirute, o Hotel Kadri era o ponto de encontro da alta sociedade durante a temporada de inverno.

Mas era verão, época em que as praias se tornavam o destino preferido dos libaneses endinheirados e o hotel ficava praticamente sem hóspedes. Em outros tempos, Mireille certamente não escolheria um lugar sem “platéia” para curar uma dor-de-cotovelo. Mas como naquele momento ela realmente não estava interessada em badalação, gostou da idéia de que não haveria quase ninguém por lá. No auge de sua depressão amorosa, pesando apenas 48 quilos e sem ânimo para freqüentar o circuito Elizabeth Arden, era melhor que fosse assim.

          No verão, Zahle voltava a pertencer plenamente aos libaneses árabes, aqueles que amavam a terra, a comida e especialmente a língua, na mais autêntica e antiga de suas formas. Era esse apego às tradições que tornava o lugar especialmente desinteressante para uma mulher como Mireille, educada nas melhores escolas francesas de Beirute, praticamente sem contato com o idioma e a história libaneses. Beirute era a “Suíça Oriental”, a “pérola do Oriente Médio”, e quem vinha de lá costumava ver Zahle não como um reduto de resistência cultural, mas como sinônimo de atraso e falta de charme.

          Mireille convidou Sônia, uma prima avoada e divertida, para acompanhá-la. Assim teria dois ingredientes essenciais para enfrentar qualquer crise existencial: um ombro amigo e uma paisagem belíssima a encantar os olhos. Deliciosamente ingênua, com expectativas bem mais humildes em relação à vida, Sônia era a companhia ideal. Prestava-se bem ao papel de confidente: ouvia com interesse as histórias da prima e dava conselhos.

          Não faltavam distrações na região, desde restaurantes célebres até as grandiosas ruínas de Baalbeck, remanescentes do Império Romano. Visitantes de todos os cantos do mundo faziam questão de tirar fotos sob as seis grandes colunas do Templo de Júpiter, com mais de 50 metros de altura. Havia ainda a riqueza histórica do próprio hotel Kadri. O prédio fora invadido em 1914 por Jamal Pacha, o Turco, que o transformou em quartel-general e hospital para seu exército, tratando funcionários e hóspedes com brutalidade. Foi também no hotel que, no dia 3 de agosto de 1920, o general Gouro anunciou a anexação do Líbano pela França, iniciando o protetorado proposto pelas Nações Unidas ao final da Primeira Guerra Mundial.

Poetas famosos como Ahmed Chawki produziram algumas de suas obras-primas hospedados em um dos 105 quartos do Kadri. O florescimento de dezenas de literatos de expressão ao longo do século XX levou Zahle a ser conhecida como “cidade dos poetas”. A produção de vinho era outro motivo de fama, já que o clima da região – com os cumes das montanhas cobertos de neve nos meses frios – favorecia o cultivo de uvas.

Apesar das várias possibilidades de passeio durante o dia, à noite não havia muitas alternativas de lazer para duas jovens sozinhas – nem ânimo de Mireille para aventuras do gênero. Assim, ela e Sônia invariavelmente desciam ao lobby do hotel para tomar um drinque antes de dormir.

Fora da temporada de inverno, raramente aparecia alguém diferente no Kadri. Certa noite, no entanto, dois homens bem vestidos entraram no piano-bar. Um deles Mireille conhecia desde criança, já que as famílias de ambos freqüentavam os mesmos lugares: era Ibrahim, um fazendeiro que ela, com sua educação francesa e vivência em vários países, considerava grosseiro e caipira.

Na adolescência, um dos passatempos prediletos de Mireille era satirizar os hábitos e atitudes dos jovens da região. Ibrahim, um ano mais velho, era um dos alvos prediletos. A jovem ria do bigodinho dele, das roupas, do sotaque pesado de árabe. Tamanha hostilidade não deixava de ser uma reação: filha de divorciados desde os dez anos, com hábitos excessivamente liberais como usar shorts e biquíni (os primeiros a chegar às lojas de Beirute), ela não era bem vista pelas famílias tradicionais da região. O fato de ter sido criada pelo pai, sem muito envolvimento da mãe, a transformava em um caso ainda mais peculiar. E esse pai era armênio – ou seja, um dos estrangeiros considerados “intrusos” pelos “verdadeiros donos” do Líbano.

          Mireille era, de fato, muito diferente das outras jovens. Seu comportamento não se enquadrava em qualquer padrão. Ela cultivava um evidente prazer em provocar e escandalizar. Não era apenas o jeito de se vestir, mas a forma como falava e, sobretudo, o que falava. Nunca escondeu suas opiniões sobre os outros e não tinha o menor problema em expressá-las. Franqueza sempre foi a mais reconhecida – e temida – de suas características. Quem convivesse com ela corria o risco de ouvir frases como “você está gorda”, “que vestido horrível” ou “teu marido tem outra” pronunciadas com a naturalidade de quem pede para passar o sal à mesa.

Mireille não agia dessa forma para parecer autêntica, independente ou forte, mas simplesmente porque, desde pequena, a autocensura não costumava passar pela sua mente. Ela muitas vezes agia como uma criança sem noção de limites. O que a transformava em alguém difícil de odiar é que também dizia frases positivas com a mesma naturalidade.

          Apesar do desprezo de Mireille, Ibrahim era um homem importante. Proprietário de uma das mais belas e produtivas fazendas da região, ele era chamado pelo título nobre de Bêik, descendente de Sheik. Na fazenda, que ocupava toda a aldeia de Kfardabach e tinha dezenas de empregados, cultivava olivas, cerejas e milho.

Ibrahim pertencia a uma família tradicional na região, os Malouf, cuja grafia original, Ma´yoof, passou por sucessivas atualizações. O clã vinha da antiga Arábia, como uma dissidência do clã Ghassani. O patriarca dos Malouf, Ibrahim Abu Raajeh Maloof Al Ghassani Al Horani, nasceu por volta de 1470. Cada um de seus sete filhos – Shadeed, Simão, Youssef, Nasser, Farah, Namen e Hanna – iniciou uma ramificação dos Malouf.

          Membros da família migraram para o Líbano, a Síria e a Palestina, lugares em que os Malouf passaram a ter grande influência. Tornaram-se governantes e estiveram à frente do poder por séculos. O título de Sheik chegara à família no século XVII, quando Kamal Mozer Malouf, um homem da política e das letras, foi com ele agraciado pelo emir Ahmad Maan, o último da dinastia Maan, substituída em 1697 pelos Shehab, após quase dois séculos no poder.

Junto com o título, Malouf recebeu o governo da região de Mouhaidsi. Os Malouf se dedicaram por gerações às letras, não somente no Líbano como em outros países. A família sempre foi repleta de poetas, alguns com versos recitados nas escolas libanesas, como era o caso de Shahim Maluf, pai de Ibrahim.

Muitos representantes da família saíram do Líbano entre os séculos XIX e XX, em face principalmente dos muitos conflitos ocorridos no Oriente Médio ao longo desse período. No Brasil, que se tornaria berço de novas gerações da família Malouf, as tradições ancestrais de envolvimento com as letras foram mantidas. Um dos periódicos que circulavam no país no início do século XX era o jornal Brasil, de Caesar Malouf. O jornal deixou de circular em 1914, mas o mesmo grupo de intelectuais que o produzia fundou, no dia 5 de janeiro de 1932, a Liga Andaluza de Letras Árabes, que passou a publicar a revista Al Usbat.

O presidente da Liga era Michel Maluf e vários outros membros da família (já com o nome simplificado para a grafia em português) participavam ativamente da instituição. Literatos como Fauze, Michel, Riad, Chafic e Nuhra Maluf tiveram obras publicadas no Brasil. Livros como Bissat Al Rih (1929) e Ibn Hamed (1950), de Fauze Maluf, e Al Ahlan (1929) e Akbar (1936), de Chafic Maluf, fizeram sucesso no Líbano e em vários países de emigração libanesa.

 

***

 

Ibrahim foi ao hotel com um primo, Tôni, que passava uma temporada na fazenda – os dois iam eventualmente ao Kadri para jogar gamão, beber e jogar conversa fora. Ao avistar Mireille, Ibrahim logo lembrou da menina arrogante, de nariz empinado, que falava um árabe macarrônico. Como estudara em escola francesa – Beirute havia sido colônia francesa até 1948 –, ela preferia conversar no idioma de Proust, o que soava como exibicionismo para quem tinha orgulho das origens e grande interesse pelo legado dos antepassados, como Ibrahim, um árabe típico.

O desempenho de Mireille na escola nunca foi dos melhores. Quando ela completou 15 anos, o pai perguntou-lhe o que, afinal de contas, ela planejava fazer na vida, do que gostava, pelo que se interessava de verdade. Mireille respondeu que gostava de tocar piano, de jogar tênis, de cozinhar e de moda. Zareh pesquisou para descobrir um lugar onde ela poderia aprender e exercitar tudo isso e chegou a uma escola de boas maneiras na Suíça.

E lá foi Mireille para o pensionato freqüentado não apenas pela nobreza européia, mas também por princesas árabes e outras futuras damas da sociedade ao redor do mundo. Se ela já era mimada, certamente ficou muito pior depois dos dois anos que permaneceu na Suíça. Nenhuma daquelas moças planejava estudar de verdade, dedicar-se com afinco ao aprendizado de matemática, ciências, essas coisas – afinal, trabalhar e ganhar o próprio dinheiro não era propriamente o sonho delas.

Os critérios de escolha das disciplinas a estudar eram peculiares. As meninas se matriculavam na aula de tênis porque o instrutor era bonito. Como piano dava muito trabalho e exigia dedicação, essa não era a atividade mais popular. Nas lições de culinária, o que nenhuma delas queria aprender eram os pratos doces, para não cair em tentação e ganhar peso.

Certa vez, num fim de tarde ensolarado em Lausanne, Mireille se encontrou com amigos de várias partes do mundo e, diante dos relatos sobre o grau de habilidade de cada um com os esquis, ela não hesitou em afirmar que era uma exímia esquiadora. Na realidade, tivera não mais do que uma ou duas aulas. Bem equipada, ao menos, Mireille estava. Havia ligado para o pai e pedido dinheiro para comprar o equipamento que acabara de sair na capa da mais glamourosa revista de moda em Paris.

Quando o grupo de amigos decidiu testar uma das mais difíceis pistas locais, Mireille não teve coragem para admitir que havia exagerado sobre sua habilidade no esporte. Subiu de teleférico ao topo da pista e, em vez de temerosa pelo que enfrentaria, estava feliz da vida pela oportunidade de exibir seus novos casacos e o equipamento ultramoderno.

          Eram quatro da tarde quando Mireille chegou ao topo da montanha. Ela inventou uma desculpa qualquer – algo como “vão indo na frente que preciso ajustar meus esquis” – para não revelar a fraude. Os colegas mais habilidosos seguiram e esperaram os demais lá embaixo. Mireille imaginava que conseguiria descer lentamente, mas a pista era íngreme demais para isso. E a verdade é que ela mal conseguia se equilibrar no par de esquis. Então pensou em descer sentada, o que certamente consumiria horas. Àquela altura, contudo, não havia alternativa.

          O tempo passava e Mireille não aparecia na base da pista. Quando anoiteceu de vez, os responsáveis pelas meninas do internato ficaram desesperados e uma equipe de resgate se formou. Iniciou-se uma busca que mobilizou dezenas de pessoas. A “exímia esquiadora” foi encontrada, com muito frio, sentada, aguardando que alguém viesse resgatá-la. E ainda encontrou ânimo para se encantar com o yodel, o canto tirolês usado pelos policiais na montanha para fazer contato com pessoas perdidas. “Muito chique, muito europeu”, pensava ela enquanto tremia o queixo.

Mireille adorava ser o centro das atenções, ainda que em sacrifício do bom senso. Muitas vezes ela fazia questão de não assimilar o que o mundo civilizado convencionou chamar de “hábitos e costumes”. Seu mundo era exclusivo, sua realidade uma fantasia permanente. Para ela, só assim valeria a pena viver. O resto era passar pela Terra sem grandes emoções – “uma merda”, como gostava de repetir carregando no charmoso sotaque francês.

 

***

 

          Na infância, Mireille costumava ir ao Hotel Kadri acompanhada do pai e do irmão. Não tinha a figura materna por perto, o que era completamente fora dos padrões. O pai, Zareh, dava-lhe toda a liberdade para fazer o que bem entendesse. E a enchia de mimos, realizando todos os seus desejos. Ela saía quando queria e não precisava dar explicações sobre nada. Era tudo muito moderno não apenas para Ibrahim, mas para todos os demais freqüentadores do hotel, a “nata” da sociedade, que olhava aquela família com desconfiança.

          Mas ali estava ela, desta vez sem o pai por perto, naquele hotel quase vazio, olhando – por absoluta falta de alternativas – para o mais insosso dos seres sobre a face da Terra, o tal do Ibrahim.

-- Onde diabos fui me meter..., ela repetia baixinho.

Mireille o considerava não apenas grosseiro e caipira, mas também pretensioso por bancar o galã em função da semelhança física com o ator Omar Sharif. Para as meninas da região, que jamais tinham saído dali, Ibrahim era mesmo o homem mais belo do mundo. Pretendentes e “passatempos”, de fato, não lhe faltavam.

Graças à antipatia recíproca na adolescência, Mireille e Ibrahim logo se reconheceram e acharam curioso aquele reencontro – afinal, não se viam havia um bom tempo. O movimento de aproximação veio de Ibrahim, até porque Mireille jamais daria o primeiro passo nesse sentido. Ela sempre adotava a tática da indiferença: fingir que não estava dando a mínima era a fórmula infalível para atrair as atenções masculinas.

-- Podemos nos sentar aqui com vocês?, perguntou Ibrahim.

Mireille permaneceu fiel à personagem que adorava interpretar:

-- Desculpe, mas estou com dor de cabeça e preciso descansar.

Levantou-se e seguiu rumo ao quarto, imediatamente acompanhada por Sônia. Os dois rapazes ficaram sem ação.

Na noite seguinte, Ibrahim e Tôni novamente apareceram no piano-bar. Só que, desta vez, Sônia não quis perder a chance de conhecer aqueles rapazes simpáticos e, ao perceber que eles novamente se aproximavam, implorou para que Mireille continuasse na mesa. Mireille devia esse favor à fiel acompanhante e, assim, os quatro finalmente se reuniram.

Enquanto Sônia e Tôni conversavam animadamente, Ibrahim e Mireille se limitavam a trocar poucas palavras. Até porque ela mal conseguia entender o árabe dele. Àquela altura, o idioma original da região era um privilégio para os poucos que ainda se dispunham a estudar o Líbano do tempo dos fenícios, primeiro povo a construir embarcações e a atravessar os mares. Era justamente sobre essa riqueza histórica que Ibrahim discorria, enquanto Mireille fazia questão de não demonstrar o menor interesse pela conversa. “Como alguém pode viver acreditando que vive no centro do universo, que é a fonte de toda a sabedoria do mundo?”, pensava.

          Tôni convidou Sônia a visitar a fazenda no dia seguinte. Ela foi e adorou o passeio. Disse a Mireille que era um lugar bonito e que havia se divertido muito. Elogiou Tôni, classificando-o como “um verdadeiro cavalheiro”. Por fim, aconselhou a prima a conhecer melhor Ibrahim, que deveria ser igualmente agradável e simpático.

Com a insistência de Sônia, os quatro foram juntos à fazenda. Elas estavam completando quatro dias de retiro nas montanhas e começavam a se aborrecer com a monotonia do hotel, que parecia estar cada vez mais vazio. E os hóspedes que restavam pareciam ser os mais velhos. Até mesmo os drinques começavam a se tornar repetitivos... Ver um ambiente novo, mesmo que não fosse dos mais glamourosos, parecia ser algo providencial.

Assim que passaram pela porta da casa-sede, Ibrahim começou a falar sobre a história do imóvel, o passado da aldeia, a tradição poética do clã, as plantações, os quadros nas paredes, a criação de cavalos árabes, os antepassados... Era uma história longa, mas fascinante.

          -- Esses são meu bisavô Namen Bacha, meu avô Brahim e meu pai, Shahim –, dizia, enquanto apontava orgulhosamente para os quadros sobre a lareira.

          Mireille não poderia estar se sentindo mais entediada com todo aquele discurso. Quando Ibrahim começou a contar a história da espada que havia sido do bisavô dele e do brasão de família que havia sido do tataravô, Sônia começou a ficar desconfiada. De repente, puxou Mireille para um canto e disse baixinho:

          -- Não estou acreditando! O Tôni fez exatamente o mesmo discurso ontem, quando estive aqui! Até o mesmo pai eles têm? Mas como, se são primos? De quem são estas terras, afinal?

          “Agora chega!”, pensou Mireille. “Vou embora, chega dessa mentalidade provinciana, não suporto mais esse sujeito que acha que o mundo começa e termina nesta sala!” Mireille ficou ainda mais revoltada ao lembrar da reputação daquela família, tida como representante da nobreza e da intelectualidade local. Ela achava tudo aquilo muito boçal. No mundo de verdade, no mundo lá de fora, quem iria se importar com a nobreza de uma cidadezinha dentro de um país mixuruca de apenas 10.500 quilômetros quadrados?

          Ibrahim parecia estar captando os pensamentos de Mireille – até porque as expressões de raiva e desdém que ela fazia eram ótimos indícios. Só que, em vez de abreviar o discurso ufanista, ele demonstrava um prazer sádico ao prolongar a “tortura”.

-- E o que você esperava desses sujeitos? – disse Mireille, em voz alta, para Sônia. – Eles não têm mais nada para fazer do que inventar histórias e ficar catando esterco nesta fazenda. Vamos embora!

          Ibrahim apenas relatava o que havia ouvido desde pequeno e demonstrava o orgulho que tinha da história de sua família. Ele acreditava que a saga dos Malouf interessaria a qualquer pessoa, mas Mireille não se impressionava e, com seu temperamento tempestuoso, fazia questão de demonstrá-lo.

          Nem por isso ele desistiu de uma aproximação – aliás, era justamente o temperamento tempestuoso de Mireille que o atraía, tanto quanto sua beleza.  Ela era muito diferente das outras mulheres que havia conhecido, as moças “certinhas” e “casadoiras” das famílias tradicionais da região. Se na adolescência o comportamento fora do convencional de Mireille era algo chocante para Ibrahim, agora representava o contato com um universo novo, fascinante, o lado ocidental e debochado de Beirute.

          A capital libanesa vivia sua fase áurea. Era uma cidade próspera, requintada e de espírito livre. Naquele mesmo ano de 1961 estava sendo inaugurado o Hotel Phoenicia, que se tornaria um dos ícones da modernidade de Beirute. Seus doze andares, erguidos em frente ao Mar Mediterrâneo, eram repletos de cenários que lembravam os filmes de Hollywood. A cosmopolita Rua Hamra era outro ponto marcante da cidade, concentrando a vida intelectual em torno dos muitos pubs, cafés e teatros. 

 

 

***

 

 

 

A temporada no Hotel Kadri se prolongou e os quatro continuaram se vendo todas as noites no piano-bar quase vazio. Na medida em que se tornaram mais íntimos, Mireille deixou os resquícios de pudor de lado e passou a contar intimidades, como o fato de ter feito plástica nos seios e no nariz, algo incomum no Líbano à época.

Também descrevia viagens fascinantes por vários países da Europa e contava detalhes de todos os seus relacionamentos amorosos. Aos poucos, foi se soltando e apreciando verdadeiramente a companhia.

Certa noite, depois do costumeiro uísque no hotel, Ibrahim convidou os acompanhantes para ir a uma boate. Chegando lá, demonstrou sua intimidade com um ritmo que estava ganhando fama mundo afora, o samba brasileiro. Mireille ficou bem impressionada com aquela inusitada habilidade, adquirida no período da adolescência em que Ibrahim morou no Brasil, na casa da avó materna, quando teve a oportunidade de conhecer os Maloufs imigrantes e a forma pela qual representavam a cultura libanesa na América do Sul.

Tudo seguia bem até que, em Beirute, a mãe de Ibrahim, Adibe, ouviu falar que ele estava se encontrando com a tal Mireille no Hotel Kadri – e ficou transtornada. Como assim? Logo com a filha do armênio, divorciada, aquela menina que só fazia escândalos no hotel, que colocava salto alto, batom vermelho e usava shorts minúsculos? Por que Ibrahim estava dando trela para uma desclassificada como aquela, se era noivo de uma das moças mais cobiçadas de todo o Oriente Médio?

Sim, é preciso esclarecer esse ponto, embora Ibrahim curiosamente tivesse esquecido de contá-lo a Mireille nos primeiros encontros do piano-bar. De fato ele era noivo de uma mulher muito bela, egípcia, irmã justamente do ator Omar Sharif, que no ano seguinte ficaria famoso no mundo inteiro interpretando Lawrence da Arábia no cinema (e que, inusitadamente, também se tornaria campeão mundial de bridge, comprovando sua origem aristocrática).

Quando finalmente soube do noivado de Ibrahim, Mireille lembrou-se que, algumas semanas antes, estava no melhor cabeleireiro do Cairo e tinha ao seu lado uma mulher deslumbrante, de olhos amendoados e cabelos negros, que mostrava à manicure o anel de noivado que acabara de ganhar.

-- Veja este anel, Watfa, não é maravilhoso? Olhe quantos brilhantes! Mas o noivo é ainda mais belo que o anel. Ele é mais lindo que meu irmão.

-- Mais lindo que Omar Sharif? Impossível, não diga essa besteira.

-- Ele é mais lindo, mais culto, e tem uma bondade única. Pena que o vejo pouco, ele lá no Líbano e eu aqui no Egito. Mas quando nos casarmos eu me mudarei para lá.

Quem seria o noivo daquela mulher? Como poderia haver alguém em Beirute que Mireille não conhecesse e que valesse tanto a pena conhecer? Claro que o noivo daquela mulher só poderia estar em Beirute, única cidade do Líbano em que um homem verdadeiramente interessante suportaria viver. E Mireille achava que já conhecia todos...

          -- Como se chama o seu noivo?, perguntou a manicure.

          -- Ibrahim. Ibrahim Shahim Bacha El Malouf, ou simplesmente Brahim Pachá.

          Que horror! Não podia ser verdade! Agora que Mireille conheceu o tal Ibrahim... Será que aquela mulher não tinha o menor senso de ridículo? E ainda por cima usando um título nobre para identificar o noivo caipira?

          Se Mireille tivesse prestado mais atenção às histórias contadas por Ibrahim saberia de que nobreza falava a moça. Tratava-se de uma aristocracia conhecida em todo o Oriente Médio, iniciada com Boutros Abu Nijen Malouf, tataravô de Ibrahim. Nascido na cidade de Zahle em 1788, Boutros possuía duas vilas na região, Aas Saeedeh e Beit Maayel, onde seus parentes viviam.

Em 1819, iniciou-se uma grande rivalidade em Zahle entre o clã dos Harfooshi e as demais tribos. O estopim dessa rivalidade ocorreu quando Diyaab Harfooshi matou dois homens das outras tribos em Al Qaataara, local de extração de carvão ao oeste do Líbano. Diyaab foi morto em seguida, por vingança. O príncipe sírio Basheer pediu que a paz fosse restabelecida, mas foi em vão: os Harfooshi trataram de matar os assassinos de Diyaab logo após a tentativa de reconciliação. Indignado com a insubordinação dos Harfooshi, Basheer convocou as demais tribos de Zahle a enfrentá-los.

          Em 1824, Boutros Malouf soube que o filho de Diyaab, príncipe Ameen Al Harfooshi, estava em Beit Maayel, terras de sua propriedade, e avisou o príncipe Basheer. O príncipe pediu a Boutros que organizasse uma expedição de captura. Com o tataravô de Ibrahim à frente, as tribos de Zahle marcharam para Beit Maayel. Depois de uma batalha que deixou vítimas de ambos os lados, os Harfooshi foram expulsos da região.

          O episódio serviu para que Boutros fortalecesse o vínculo com o príncipe Basheer e, a partir daí, encontrasse portas abertas para diversos negócios que o favoreciam. Tornou-se um importante comerciante das safras locais, especialmente de trigo, e também de cabras e carneiros. A influência de Boutros aumentou ano após ano, até ser designado administrador de Zahle. Sua morte, no dia 5 de outubro de 1843, provocou grande comoção em toda a região.

          O filho de Boutros, Namen Boutros Malouf, nascido em 1831, herdou não apenas os traços físicos do pai – era alto e forte –, mas também a reconhecida coragem. Órfão de mãe desde os dois anos e de pai aos 12, Namen passou a cuidar dos irmãos e irmãs e se transformou, ainda adolescente, no administrador dos negócios da família. Foi bem sucedido desde cedo.

Certa vez, ele decidiu viajar para Kloordaajh, perto da Turquia, para comprar um grande número de carneiros e revendê-los no Egito, onde os preços eram maiores. Depois de quatro meses de viagem, voltou ao Líbano com 15.000 carneiros, mas encontrou um cenário caótico: a febre amarela se espalhava rapidamente pela região. Muitos dos pastores que cuidavam dos carneiros adoeceram e parte do rebanho ficou à mercê de ladrões. Restaram apenas 4.000 cabeças.

Namen conseguiu vender os animais que sobreviveram ao Egito, mas o infortúnio continuou: os carneiros adquiriram varicela na viagem até Alexandria, local combinado para a entrega, e tiveram que ser jogados ao mar. Ele ficou sem nada. Recuperou-se aos poucos do baque financeiro importando trigo de Damasco e revendendo-o no Líbano.

          Aos 18 anos, Namen fora pai de um menino, Ibrahim, nascido em 1849. Ainda muito jovem, Ibrahim assumiu cargos administrativos em Zahle, mantendo a tradição do avô Boutros. Em 1900, a pedido do governador do Líbano, tornou-se membro da Comissão de Educação e Agricultura. O cargo fez seu prestígio diante da nação turca aumentar a ponto de ser nomeado “Graduado Oficial” do governo turco na região. A maior honra viria em seguida, na forma de um poema presenteado por um dos maiores autores do Oriente Médio, o poeta Dawani Al Qutoof:

Ibrahim Malouf

Alcançastes o maior dos títulos;

Que com ti caminhará e

tua herança será transmitida aos teus herdeiros.

A ti, funcionário louvável,

foi dada uma graça,

por tão fiel dedicação.

Deus o protegerá a ti e aos teus

de quaisquer calamidades

e aflições.

Foi lhe dada

segurança

pelas mãos dirigentes.

Congratulamos Ibrahim

por seu título de

Terceiro Oficial.

          Seis anos depois, Ibrahim recebeu o título de “Príncipe dos príncipes”, por meio de um Decreto de Privilégio assinado pelo sultão da Arábia. A notícia teve grande repercussão nos jornais do Líbano, da Síria, do Egito e até da América. Ibrahim tornava-se, assim, o mais ilustre dos filhos de Zahle. Foram três meses de festividades na cidade para celebrar a condecoração. Visitantes chegavam de outras regiões para cumprimentá-lo e centenas de correspondências foram enviadas por filhos de Zahle espalhados pelo mundo.

          Ibrahim teve dez filhos. Foi a Shahim que, ao morrer em 1917, Ibrahim deixou o título de pachá, sua espada, a espingarda e um quadro que pertencera aos antepassados. O quadro foi deixado por Shahim ao seu filho, batizado com o mesmo nome do avô, Ibrahim. Esse quadro estava pendurado na entrada da fazenda quando Ibrahim e Mireille foram visitá-la ao lado de Tôni e Sônia.

“Quem liga para esses títulos árabes e antiquados quando existem hoje no mundo empresas gigantescas como a Texaco e dirigentes que adotam lemas como ‘Quero ações e não palavras’”?, pensara Mireille, lembrando do primeiro ex-marido, executivo do setor de petróleo, no exato momento em que Ibrahim mostrava, com grande orgulho, o quadro passado há gerações de pai para filho.

Como em uma alucinação, Mireille começou a imaginar em rápidos flashes a vida infeliz, vazia e monótona que estaria reservada à mulher que se casasse com aquele moreno de olhos negros e bigodinho bobo – ainda mais com tantos loiros de olhos verdes à disposição na Europa... Ah, que saudades de Statis!

 

***

 

          O noivado de Ibrahim já durava nove anos. Era um típico compromisso de conveniência, acertado entre as duas famílias. Um eventual rompimento àquela altura seria impensável, uma grande desonra. Adibe, sua mãe, ficou seriamente preocupada ao saber que o filho estava se aproximando de alguém com a ficha corrida de Mireille. Para tentar evitar o pior, ela entrou em contato com Ibrahim e ordenou que ele parasse imediatamente com aqueles encontros sem propósito, antes que a fofoca chegasse aos ouvidos das famílias mais tradicionais do Líbano.

Adibe era uma mulher de temperamento forte. Muito bela na juventude, tinha traços marcadamente árabes – morena com expressivos olhos negros. Vestia-se impecavelmente, de forma clássica. Sua marca registrada era o coque sempre perfeito, sem um fio fora do lugar. Tinha fama de arrogante e preconceituosa, mas era inegavelmente culta e carismática.

Nascida em São Paulo, cresceu entre comerciantes e mascates. Era filha da primeira leva de libaneses que chegaram ao Brasil, no final do século XIX. Imigrantes libaneses e sírios eram genericamente registrados pelas autoridades brasileiras como “turcos”, e dessa forma imprecisa passaram a ser chamados no país. Com o tempo, os “turcos” ganharam a fama de pães-duros, influência dos personagens estereotipados que apareciam em programas humorísticos do rádio.

O pai de Adibe, Nicolau, chegou ao Brasil pobre e fez fortuna como comerciante, mas depois perdeu tudo, culpa de um irmão que apostou a fazenda da família na mesa de jogo. Nicolau morreu pouco depois, dizem que de desgosto, deixando os nove filhos – cinco mulheres e quatro homens – em má situação financeira.

Os filhos tiveram que se virar. Mais velha entre as mulheres, Adibe liderava as irmãs no trabalho como chapeleiras, em uma loja estabelecida na avenida São João, centro de São Paulo. As mulheres da alta sociedade paulistana encomendavam a elas os seus chapéus, acessório obrigatório para compor a elegância feminina à época. Foi a forma que Adibe e as irmãs encontraram para assegurar o sustento da família depois da falência e morte do pai.

Envolvida com a tarefa, Adibe se sacrificava pela mãe, irmãos e irmãs, e deixava sua vida pessoal em segundo plano. Ela havia sido apaixonada por um jogador de futebol – goleiro do Santos –, mas considerou que aquele não era o homem ideal para se casar (os jogadores de futebol ainda não ganhavam a fortuna que viriam a receber décadas depois). Quando conheceu Shahim, um fazendeiro riquíssimo e de grande bondade, que acabara de chegar ao Brasil, e que não disfarçava o encanto causado pela beleza de Adibe, julgou ter encontrado o marido ideal.

Depois do casamento, Shahim a levou para o Líbano, onde Adibe logo se sentiu em casa. Quando o pai ainda era rico, ela havia tido um professor particular para ensiná-la a ler e a escrever em árabe. Vivendo no Líbano, passou a dominar o idioma melhor do que muitos libaneses. Começou a escrever poesias, como era tradição na família do marido. Tornou-se uma das poucas mulheres de todo o Oriente Médio capazes de ler, traduzir, escrever e fazer versos em língua árabe.

Adibe e Shahim tiveram dois filhos: Ibrahim, nascido em 1931, e Nouhade, três anos mais jovem. Um casal de irmãos que cresceu em um ambiente familiar formal e severo, estreitamente ligado a influências políticas, porém repleto de livros e de cultura. Ibrahim, mais extrovertido que a irmã, tinha um aguçado senso de humor e gostava de sair em turma, de dançar e de celebrar a vida. Nouhade, parecida com a mãe, preferia o ambiente familiar, seguindo à risca o papel que se esperava das mulheres libanesas à época.

Shahim morreu quando Ibrahim tinha 16 anos. Adibe assumiu os negócios da família e passou a controlar a herança deixada pelo marido. Transformou-se de vez em uma mulher poderosa e autoritária. Planejava encaminhar os filhos para casamentos de conveniência.

          Ibrahim formou-se em filosofia e humanidades pela universidade de Saint Joseph, em Beirute, que seguia o currículo de Sorbonne, já que o Líbano estava sob protetorado francês. O rapaz parecia cumprir, página a página, o script reservado a ele. Nouhade, com grande talento para a escrita e uma cultura invejável, também enveredara pelo caminho da filosofia e das letras, mas abandonou os planos para seguir os rumos designados por sua mãe, origem da imensa tristeza que a perseguiria pelo resto da vida.

Sempre obediente à autoridade da mãe, Ibrahim considerou que Mireille representava uma ótima oportunidade para quebrar essa regra. Sem maiores pretensões – a verdade é que não lhe passava pela cabeça romper o noivado –, ele não apenas continuou vendo Mireille como ainda fazia questão de contar a ela como a mãe e os parentes dele em Beirute estavam chocados com os encontros dos dois no Hotel Kadri.

Pela primeira vez desde que conhecera Ibrahim, Mireille ouvia com verdadeiro entusiasmo cada palavra do que ele dizia. Estava satisfeita por abalar as bases de uma família que representava tudo o que ela desprezava, uma família que dava importância excessiva às aparências, às tradições, aos sobrenomes. Sentia-se desafiada, o que a levou a superar de vez a ameaça de depressão. Sem nada a perder, resolveu levar aquele desafio adiante. Seria divertido competir com a célebre e poderosa Adibe Malouf.

-- Vamos ver quem ganhará essa batalha – pensava Mireille, enquanto lançava em direção a Ibrahim o seu típico olhar falsamente desinteressado.

A temida “ficha corrida” de Mireille de fato incluía muitas conquistas passageiras. Aos 17 anos, assim que retornou da Suíça, ela causou frisson em Beirute com a sensualidade que desabrochava aos olhos de todos. Pronta para ser apresentada à sociedade local, passou a acompanhar o pai nos eventos que ele precisava freqüentar como alto funcionário da hierarquia governamental. Zareh orgulhava-se muito da companhia da filha, que havia se transformado não apenas em uma mulher bonita, mas também em uma jovem capaz de conversar sobre qualquer assunto e que já havia visitado os lugares mais exóticos do mundo.

Em uma dessas recepções, na embaixada dos Estados Unidos – um baile em homenagem à companhia de petróleo Aramco –, ela recebeu um “torpedo” de um rapaz que assinava Olen Webb. O bilhete dizia apenas que ele estava encantado com tamanho charme e gostaria de conhecê-la.

A palavra usada por Joe (esse era o apelido do rapaz) para tentar marcar um encontro foi “date”. Como Mireille estava longe de ser fluente em inglês, ela fez uma pequena confusão ao interpretar o bilhete. Foi à mesa dele e o cumprimentou:

-- Muito prazer, senhor Date. Gostei do seu bilhete.

Joe achou que a bela moça estava brincando e ficou ainda mais encantado com Mireille. Ele era um dos diretores da Aramco na Arábia Saudita. Tinha pouco mais de 30 anos, o dobro da idade dela. Os dois começaram a namorar e dois meses depois estavam casados. Passaram um ano na Arábia Saudita, antes de se mudarem para o Texas, onde Mireille foi finalmente apresentada à cultura norte-americana – e, verdade seja dita, não simpatizou com os afazeres domésticos desde o princípio.

No Líbano, a casa do pai de Mireille vivia cheia de empregados. Ela estava acostumada a ter sempre alguém por perto para ter qualquer desejo realizado – bastava estalar os dedos, e às vezes nem isso. De manhã, o café era servido no quarto. Depois do almoço era a hora das compras e do cabeleireiro. À noite, tempo livre para a badalação.

Ao longo do ano que Mireille passou na Arábia Saudita com Joe, a mordomia continuou. Mas nos Estados Unidos tudo mudou: ela se confrontou com o estilo “faça você mesmo”, tão apreciado pelos norte-americanos. E detestou. Achava insuportável o barulho da máquina de lavar roupa, o cheiro do sabão em pó, essas coisas que faziam parte do cotidiano de qualquer dona de casa moderna. Eis mais uma das contradições de Mireille. Era uma mulher ultramoderna, mas apenas para o que lhe parecia conveniente...

Além do mais, havia o tal do happy-hour. Joe sempre bebia seus drinques em casa, depois do expediente, e freqüentemente chamava amigos – a quem gostava de exibir a esposa quase como um bibelô. A conversa não tinha hora para acabar e era comum Mireille se ver obrigada a adentrar a madrugada com cinco ou seis sujeitos meio bêbados dentro de casa.

Até que chegou o dia em que ela decidiu largar aquela vida: simplesmente avisou ao marido que estava voltando ao Líbano, pondo fim a um casamento de sete anos.

De volta a Beirute, reencontrou a vida que adorava: muitas festas, night clubs, nenhum compromisso ou afazer doméstico. Freqüentava a Byblos, uma boate tão famosa que mais tarde abriria uma filial em Saint Tropez. De manhã, ia à piscina do Hotel Phoenicia tomar sol. À tarde, passeios ou chá com as amigas. À noite, retomou o hábito de acompanhar o pai nas recepções. Durante as férias de verão, Mireille ficava nas praias de Beirute, enquanto no inverno ia esquiar nas montanhas – tornando-se, agora sim, uma esquiadora hábil.

Nessa fase, Mireille ganhou uma nova companhia para as badalações: a própria mãe, Marie. Apreciar a noite talvez tenha sido uma herança genética. A vocação mundana de Marie foi um fator decisivo para que o casamento com Zareh chegasse ao fim. Os dois se separaram quando Mireille era criança. Mesmo separados, no entanto, Zareh e Marie continuavam bons amigos. No final da vida, inclusive, voltariam a viver juntos.

Marie gostava de jogar bridge, de fumar e de beber, comportamento também muito avançado para a época. Ela passou a chegar cada vez mais tarde em casa e a perder mais e mais dinheiro na mesa de jogo, vício que herdara do pai, jogador compulsivo. Sempre que chegava sem uma jóia, argumentava ao marido que a havia perdido em algum lugar – jamais admitia o vício do jogo. Um dia, quando disse ter perdido um par de brincos, a reação do marido não foi passiva como costumava ser.

-- Você me acha bobo? Dois brincos não podem cair ao mesmo tempo das orelhas..., ironizou Zareh. – Como já faz algum tempo que você não tem se comportado de forma adequada, vou a partir de agora morar na minha casa e você na sua. Eu cuido da nossa filha e você do nosso filho. Não a deixarei desamparada, mas espero que você contenha sua loucura. Se tudo der certo, poderemos ser bons amigos.

 

***

 

Aos 24 anos, de volta ao lar paterno, Mireille aproveitava o esplendor da idade e colecionava namorados. Dava preferência a estrangeiros, especialmente europeus. Não tardou para que encontrasse um par que se tornaria constante, um nobre italiano, galanteador como todos os italianos. E, mesmo sem oficializar a relação, foi morar com ele em Milão. Mireille passou então a ter uma vida de conto de fadas: freqüentava castelos, passava as férias entre a Toscana e Capri e freqüentemente voltava ao Líbano para visitar o pai.

Não tardou, contudo, para que mais uma vez sentisse a mosquinha da monotonia a perturbá-la. Era um relacionamento que muitos classificariam como perfeito, mas ela outra vez não estava feliz. Assim, fez com o italiano o que já havia feito com o norte-americano: abandonou-o de uma hora para a outra e voltou a morar em Beirute com o pai, seu porto seguro.

Seria a saudade de Beirute o grande empecilho para que Mireille se sentisse realizada em sua vida afetiva? Talvez. Para tirar a prova, ela decidiu que era hora de superar a resistência aos conterrâneos, demonstrar um pouco de humildade e considerar a hipótese de encontrar a cara-metade entre os próprios libaneses.

Ela se envolveu com um típico rapaz de Beirute, com vida normal, trabalho fixo, que não viajava muito e que, surpreendentemente, não era milionário. Como se pode imaginar, foi o rompimento mais fulminante de todos.

Ao menos o affair com o libanês serviu para comprovar que o problema dos seus relacionamentos não era ficar longe de Beirute, conclusão que subitamente reabriu todas as fronteiras do mundo para ela. Mireille voltou a acreditar que poderia ser feliz longe de seu país e decidiu passar uma temporada na França. Bancada pelo pai, como sempre, já que em seu dicionário particular não constava o verbo “trabalhar” – só “badalar”, “curtir”, “comprar” e outros na mesma linha.

A história se repetiu. Mireille se envolveu com um francês, passou dois anos ao lado dele, até decidir abandoná-lo e voltar para o Líbano. Em Beirute, teve mais um relacionamento tumultuado e rápido com outro libanês. Até que encontrou Statis, a quem identificou imediatamente como seu par perfeito. Diplomata a serviço da Grécia, ele viajava muito e passou a levá-la para todos os cantos do mundo. Os dois se divertiam o tempo todo. Mesmo sabendo que Statis era um homem cobiçado pelas mulheres, com um passado de Don Juan, Mireille sentia-se suficientemente segura ao lado dele, tantas eram as afinidades.

Mas aí veio o rompimento infantil com o noivo e o período de reclusão no Hotel Kadri, onde Ibrahim surgiu como um novo personagem na vida de Mireille.

E Ibrahim era completamente diferente dela em muitos aspectos. Melhor dizendo: não havia nada em comum entre eles. A começar pela constituição física. Mireille tinha aparência delicada. Era uma típica representante do Leste europeu, com boca carnuda e a pele muito branca, contrastando com cabelos e olhos bem pretos, sardas e sobrancelhas grossas, traço típico dos armênios. Fazia o tipo mignon – jamais ultrapassara 50 quilos de peso. Já Ibrahim era corpulento, robusto e ostentava a cor oliva tipicamente árabe, com cabelos e olhos castanhos escuros, além do indispensável bigode. Costumava dizer que descendia da Etiópia. “Há sangue da rainha de Sabá na família”, repetia.

Outro abismo entre os dois era a postura religiosa divergente. Como cristão, membro da igreja que respondia ao papado romano, Ibrahim acreditava pertencer ao grupo escolhido para habitar o Líbano junto aos maronitas, também cristãos, mas de outra ordem, surgida sob inspiração do monge libanês Maroon, que optou por uma vida sem conforto material, peregrinando pelos desertos do Líbano e alimentando-se de mel silvestre.

Os maronitas seguem os preceitos da Igreja Católica Romana e as ordens do Papa, mas cultivam peculiaridades em seu ritual baseadas na trajetória de Maroon. Nascido no ano de 353, o peregrino teria recebido de Deus a missão de percorrer o Oriente para salvar a fé católica da influência de outras crenças, que se espalhavam com o apoio do imperador de Constantinopla. Por isso dedicou-se a fundar mosteiros por onde passasse.

Mais de 1.500 anos depois, seus discípulos acreditavam ter a mesma missão: manter o Líbano livre da influência de outros povos. Por isso combatiam, mesmo que de forma pacífica, o pleito por maior espaço político dos muçulmanos, ortodoxos, judeus e budistas, que chegavam ao país em número cada vez maior e criavam raízes. Enfraquecidos, muitos maronitas deixaram o Líbano para estabelecer colônias em outros países, como a Inglaterra, o Canadá, a Austrália e o Brasil.

Mireille era filha de um armênio, representante de um dos povos “invasores” que ameaçavam tirar o Líbano dos maronitas. Ela não tinha o menor rigor em relação a crenças religiosas. Era gregoriana por formação, mas havia estudado em colégios católicos. Como o primeiro marido era protestante, filho de um inglês batista com uma alemã, aderiu sem muita contestação à crença dele, devidamente abandonada assim que o casamento naufragou.

Já Ibrahim era o oposto perfeito: tinha opinião fechada sobre qualquer assunto relacionado a temas como política, moral e ética. Defendia seus pontos de vista com a convicção de quem despreza a hipótese de não ter razão. “Não sei” eram palavras que pareciam nunca ter sido pronunciadas por ele, sempre muito seguro e convincente em suas argumentações. Essa postura freqüentemente irritava Mireille, sempre aberta a ouvir e tentar compreender o outro lado.

Havia muitos motivos para que cada um seguisse seu rumo depois daqueles encontros no Hotel Kadri. Mas era tarde. Uma faísca havia sido acesa entre os dois. Uma faísca que logo se transformaria em um incêndio incontrolável.

Não era difícil entender o interesse de Ibrahim por Mireille, porque ela era de fato uma mulher fascinante – e que representava, para ele, a chance de escapar de um futuro limitado e previsível. Talvez fosse a última oportunidade de tornar-se protagonista da própria história. Já o interesse de Mireille por Ibrahim podia ser explicado pela necessidade de encontrar um porto seguro depois de tantas turbulências. E também pela excitação diante da possibilidade de enfrentar a poderosa Adibe Malouf, claro.

Mireille percebeu que havia chegado a um momento da vida em que muito havia sido experimentado e pouco realmente desfrutado. As ilusões já não eram as de antes, talvez nem existissem mais. O encontro com Ibrahim significava, para ela, a chance de um recomeço.

Os dois teriam que enfrentar muitos desafios para ficar juntos. Tudo pareceu simples, contudo, diante da súbita vontade que Ibrahim e Mireille sentiram de eternizar seus primeiros momentos de loucura e atração irracional. Eles enfrentariam o mundo e assumiriam o romance assim que chegassem a Beirute. Ibrahim estava decidido a ignorar a reação da noiva, da mãe, da irmã, da sociedade, de quem quer que fosse, para viver uma paixão proibida.

Poucos dias depois, em meio ao entusiasmo de uma noitada, Ibrahim perguntou se Mireille teria a coragem de, um dia, se casar com ele. Não era uma proposta: tratava-se apenas de uma sondagem inconseqüente, quase em tom de brincadeira. Ela respondeu da mesma forma tortuosa: “por que não?” Também não era um “sim” oficial; era apenas uma especulação. Os dois riram muito com a situação e dançaram felizes pelo resto da noite, sem saber direito se estavam noivos.

Até que Ibrahim decidiu encarar a fera e contou à mãe que tinha a intenção de casar com Mireille. A reação foi a pior possível. Adibe ficou consternada, encheu os ouvidos do filho com uma série de barbaridades e passou a engendrar todo tipo de estratégia para evitar a “tragédia”.

Começou fazendo uma peregrinação por todas as igrejas de Beirute, deixando claro aos padres e bispos que interpretaria a realização do casamento como uma ofensa pessoal a ela. Argumentava que “aquela mulher” já havia se casado na igreja com outro homem e, além disso, tivera várias outras relações conjugais.

A pressão deu resultado – Adibe era influente na sociedade local – e Ibrahim não conseguiu encontrar uma igreja para realizar o casamento em Beirute. Não há obstáculos para corações apaixonados, contudo. Mireille propôs que o casamento se realizasse no Chipre, uma romântica ilha próxima à Grécia, onde, diziam, casar era tão simples quanto comprar frutas na feira. Ibrahim adorou a idéia.

Os dois convidaram Roger, o irmão de Mireille, a acompanhá-los na viagem. Na realidade, a viagem seria feita no carro de Roger, que, além de motorista, serviria também como eventual testemunha do casamento, caso chegassem de fato a esse ponto. Tudo foi planejado para ser uma grande diversão. Eles viajariam sem data para voltar. Iriam à praia, aproveitariam ao máximo o passeio e, se tivessem oportunidade, se casariam. Caso contrário, os dois simplesmente passariam a morar juntos na volta ao Líbano.

Mireille fez uma rápida peregrinação pelas lojas de Beirute à procura de um vestido de noiva. A tarefa ficou um pouco mais complicada porque ela estava decidida a casar-se com um modelo em sintonia com a descontração que imaginava encontrar no verão do Chipre – de preferência, com a barriga de fora. Sem muitas alternativas, teve que recorrer a um terninho azul-marinho, combinado com uma calça estilo Capri, com cintura baixa. E comprou um chapéu de praia para completar o traje.

As visitas às lojas mais conhecidas de Beirute serviram também para que Mireille espalhasse a notícia de que iria se casar no Chipre com Ibrahim. Ter roubado o noivo de uma mulher bela como a que conhecera no cabeleireiro era motivo de orgulho íntimo para Mireille. Antes da viagem, ela contou ao pai que faria mais aquela loucura. Ele, como sempre, evitou fazer julgamentos. Pediu apenas que a filha tomasse cuidado. Depois de um emocionado abraço, Mireille prometeu que mandaria notícias.

Assim que a balsa atracou na ilha de Chipre, os três fizeram questão de esquecer temporariamente que a viagem tinha o objetivo principal de providenciar o casamento. A primeira preocupação foi encontrar um bom hotel. A segunda, saber das diversões disponíveis na ilha.

Quando Adibe ficou sabendo da viagem, declarou que Ibrahim jamais voltaria a pôr os pés na casa da família, e que a partir daquele momento o desconsiderava como filho. Ibrahim não deu a menor importância à reação da mãe e continuou se divertindo.

A primeira semana passou voando. Até que, finalmente, Ibrahim e Mireille decidiram entrar em um cartório atrás de informações sobre como se casar. E descobriram que era ainda mais fácil do que imaginavam. Bastava apresentar duas testemunhas para a cerimônia. Uma já estava ali, Roger. 

Ibrahim, que chegara ao cartório ligeiramente bêbado, saiu de lá correndo, dando risadas, para convidar a primeira pessoa que encontrasse na rua para apadrinhar o casamento. O mais surpreendente é que o desconhecido não só aceitou o convite e acompanhou Ibrahim ao cartório como mais tarde levaria a esposa para visitá-los no hotel, ocasião em que os recém-casados foram presenteados com uma linda toalha de mesa.

Era o inesquecível dia 4 de agosto de 1962. Logo depois da cerimônia, Ibrahim e Mireille contrataram um fotógrafo, subiram uma montanha e tiraram dezenas, talvez centenas de fotografias. Os dois eram só felicidade.

Àquela altura, não apenas a mãe estava rompida com Ibrahim, mas também a irmã. Nouhade seguia com rigor todos os preceitos de Adibe e sentiu-se traída pelo irmão, que ignorava seus conselhos – bastante sensatos, a propósito, mas que para Ibrahim soavam apenas como eco da voz de Adibe. Envergonhada com a notícia do casamento do irmão com Mireille, Nouhade tornara-se ainda mais reclusa. Deixou muitas vezes de ir a festas e freqüentar a sociedade para não ter que explicar como o irmão se deixara fisgar por uma “aventureira” como aquela.

Ibrahim tinha um trunfo na mão, no entanto: a tradição libanesa dizia que ele, como filho homem, deveria ser o administrador do patrimônio deixado pelo pai. A mãe havia assumido essa tarefa nos primeiros tempos, porque ele tinha apenas 16 anos quando o pai morreu. Agora, no entanto, era um homem feito e estava pronto para assumir as rédeas dos negócios.

 

***

 

Adibe se empenhava em encaminhar a filha para um bom casamento e ficou encantada ao conhecer um jovem advogado, de carreira promissora, que estava se candidatando a promotor da República no Líbano. Seria preciso, no entanto, contar com o apoio do filho – afinal, ele era o homem da família. Adibe propôs então a Ibrahim um caminho para apaziguar os ânimos: se ele ajudasse no casamento da irmã com um bom dote, poderia administrar como quisesse e de forma independente a fazenda da família.

Ibrahim disse que só aceitaria se a mãe e a irmã se comprometessem a deixá-lo em paz, tanto na administração da fazenda – que, afinal de contas, passaria a pertencer a ele – quanto em relação a Mireille. Sem alternativas, elas concordaram. O casamento de Nouhade foi realizado com grande festa.

Quem apoiou Ibrahim e Mireille desde o começo, de forma incondicional, foi o pai dela. Zareh aprendera desde cedo a viver dia após dia, a não fazer planos de longo prazo e a não julgar os outros. Em 1890, o pai dele, Nicolau, viu os pais serem mortos pelos turcos otomanos que ocuparam a Armênia do século XVII até a Primeira Guerra Mundial, encerrada em 1918. De todos os povos que invadiram a Armênia ao longo dos séculos – incluem-se aí os gregos, romanos, persas, bizantinos, mongóis, árabes e russos –, os turcos otomanos foram os que agiram com mais brutalidade. Milhões de armênios foram mortos, e os que sobreviveram ficaram sem pátria, já que apenas em 1991 a Armênia voltaria a ser independente, como a menor república da ex-União Soviética.

            Uma das civilizações mais antigas do mundo, a Armênia foi o primeiro país a adotar oficialmente o Cristianismo como religião, por volta do ano 300. Diz a tradição bíblica que foi no monte Ararat que Noé encontrou abrigo com sua arca durante o dilúvio. As várias invasões sofridas ao longo da história fizeram dos armênios um povo sempre disposto a preservar sua cultura e tradição.            A perseguição sistemática dos armênios pelos turcos se transformou em um grande massacre durante a Primeira Guerra Mundial, quando os turcos confinaram a população armênia em desertos da Síria e da Mesopotâmia. Estima-se que, apenas em 1915, algo entre 600.000 e 1,5 milhão de armênios tenham sido mortos ou sucumbido diante da fome ou da sede, um dos maiores crimes contra a humanidade da história.             Aos 10 anos, Zareh presenciou o esquartejamento da avó paterna e dos seus tios. Escapou do massacre a pé, ao lado dos pais e do que restou da família, chegando ao Líbano um ano depois.

Sem dinheiro nem bens, a família Baghdassarian se pôs a trabalhar. Havia a decisão, no entanto, de que pelo menos um deles não parasse de estudar. As apostas recaíram sobre Zareh, tido como gênio na matemática pelos seus mestres na Turquia – e que, além do mais, tocava violino como um grande artista.

O orgulho de ser armênio foi passado de Nicolau para Zareh e de Zareh para Mireille, que não admitia manifestações preconceituosas contra o seu povo. Sabendo disso, Ibrahim fazia questão de, em meio às discussões, chamá-la de “armênia” em tom de desprezo.

A mãe de Mireille, Marie, vinha de uma família abastada. O pai de Marie, Chucre, não queria saber de um genro pobretão e refugiado como Zareh, e fez de tudo para repelir a aproximação deles. Literalmente. Chegou a jogar baldes com água fria cada vez que o futuro genro chegava perto da janela de Marie. Mas os dois estavam irremediavelmente apaixonados desde o dia em que ele foi à escola dela para tocar violino na Missa do Galo, em plena noite de Natal, e encantou-se com a menina que fazia os solos do coral.

Depois do casamento, Zareh teve que se virar para manter a esposa e os dois filhos, já que do sogro não veio um tostão. E foi muito bem na tarefa. Tanto que ficaria conhecido como “o engenheiro armênio”, aquele que, se não fosse estrangeiro, poderia ter sido o melhor ministro de planejamento do Líbano, cargo para o qual chegou a ser cogitado.

          Quando era estudante de engenharia em Beirute, Zareh ganhou uma bolsa para concluir os estudos na Escola Politécnica de Paris. Como teria tudo pago – menos a passagem –, ele deu um jeito de trabalhar no navio como violinista, com a missão de entreter os demais passageiros. Assim, conseguiu viajar de graça. Concluiu aos 22 anos as faculdades de engenharia e arquitetura, com desempenho tão bom que teve seu nome impresso em bronze na porta da Politécnica, como um dos alunos que mais se destacaram na história da instituição. Voltou ao Líbano coberto de glórias.

Não tardou para que começassem os anos dourados de Zareh. Ele construiu palacetes na Arábia Saudita, hotéis em Beirute e vários outros prédios que sobreviveram à guerra civil libanesa e são até hoje apreciados como exemplos de vanguarda na arquitetura do país. Sua obra mais famosa foi o aeroporto de Beirute, com pistas que pareciam longas demais para os aviões da época, mas que se mostraram adequadas aos Boeings que surgiriam alguns anos depois.

          Além do trabalho e da música, Zareh, com seus 120 quilos, cultivava como outro grande prazer a culinária. Nos restaurantes, um grande dilema era selecionar um único prato do cardápio. Com o tempo, ele resolveu driblar essa dificuldade pedindo mais de um prato. Os garçons dos restaurantes preferidos estavam entre seus melhores amigos, sempre sorridentes, com notícias frescas e dispostos a lhe trazer o que ele tanto gostava: comida e arguile, o fumo típico da região. Os garçons demonstravam interesse verdadeiro pelo cotidiano de Zareh, muito diferente de alguns hipócritas sociais com os quais ele estava acostumado a lidar por força da posição que ocupava.

          Zareh apreciava a vida com intensidade. Comeu, bebeu, trabalhou, gastou, amou, viajou o quanto pôde. Ultrapassou os limites permitidos à época. Divorciou-se cedo e tinha amantes à luz do dia, casadas ou não. Nos dias seguintes aos encontros usava uma rosa vermelha na lapela, como se desejasse demonstrar ao mundo que havia vivido uma noite de amor. Trocou um lar tradicional pela vida errante nos mais luxuosos hotéis. Gostava da máxima “caixão não tem gavetas”, transformada em seu lema de vida. Gastou até o último dos tostões que ganhou. Acreditava que, já que tinha conseguido sair da miséria total para o luxo graças à própria capacidade, todos os seus descendentes poderiam fazer o mesmo.

 

***

 

          Como Ibrahim e Mireille não haviam sequer parado para pensar onde morariam depois da viagem ao Chipre, instalaram-se na casa de Zareh, que recebeu o genro de braços abertos. Ele sentia prazer em continuar dando todo o conforto à filha até que o genro – com quem ele havia de fato simpatizado – se estabelecesse plenamente por conta própria.

Viveram com o sogro pelos três anos seguintes, uma fase de felicidade para o casal. Ibrahim foi trabalhar no escritório de engenharia de Zareh, um dos mais bem conceituados do país. Passou a compartilhar a sua atividade de fazendeiro com o aprendizado da arte de construir prédios. Virou supervisor de obras, braço-direito e homem de confiança de Zareh.

As notícias sobre a nova vida de Ibrahim chegavam eventualmente à mãe e à irmã, que continuavam não reconhecendo Mireille como componente da família. Alguns parentes até tentavam amolecer o coração das duas, argumentando que Ibrahim parecia feliz e que, afinal de contas, Mireille não era tão má assim. Além de ser uma moça bela e simpática, desfrutava da estabilidade financeira proporcionada pelo pai.

Adibe decidiu então visitar o filho e a nora, que ela ainda não conhecia pessoalmente. Foi um grande – e mal sucedido – esforço de aproximação. Depois de presentear Mireille com um anel, um gesto surpreendentemente simpático, Adibe questionou o que os dois pretendiam fazer depois que a euforia dos primeiros tempos de casamento tivesse passado. Mireille respondeu que aquele tipo de preocupação dizia respeito somente a eles, pondo os nervos de ambas à flor da pele. O encontro prosseguiu falsamente cordial.

Um ano depois, Mireille engravidou. Ninguém ficou mais surpresa com a notícia do que ela própria. Os médicos haviam avisado que a possibilidade de ser mãe era baixa depois de ela ter perdido uma das trompas, ainda no primeiro casamento, decorrência de um aborto espontâneo provocado por uma gravidez tubária. Ibrahim recebeu a notícia com imensa alegria. Passou a divulgar a versão de que “sentiu” o momento exato em que se deu a concepção, como se estivesse iluminado por inspiração divina. Já a mãe dele reagiu com frieza e certa ironia quando soube da novidade por telefone, o que deixou Ibrahim magoado.

Superado o choque inicial, Mireille ficou verdadeiramente entusiasmada com a novidade. Depois de tudo o que ela enfrentara – a incerteza sobre o futuro e a sensação de que jamais constituiria uma família –, a gravidez era motivo de grande alegria. E também uma oportunidade para renovar completamente o guarda-roupa, claro.

Lá pelo sétimo mês de gestação, Mireille se deu conta de que o momento do parto estava se aproximando e isso a deixou angustiada. Passou a ser atormentada pela idéia de que não tinha saúde suficiente para resistir a um parto normal. De nada adiantaram as explicações do médico e a estatística a comprovar que o ato de parir se repetia diariamente, milhares de vezes mundo afora. Ela queria ter a certeza de que tudo daria certo, sem dor e sem sofrimento, e também de que sua silhueta não seria irremediavelmente afetada.

A partir da recomendação sabe-se lá de quem, ela decidiu trocar o médico que até então vinha acompanhando cuidadosamente a gravidez pela promessa de um parto “alternativo” oferecida por um norte-americano recém-chegado ao Líbano e instalado em uma bela e moderna clínica. Ele se dizia criador de um método para realizar partos não apenas sem dor nem sofrimento, mas com intenso prazer. Mireille foi à primeira consulta e ficou encantada com as promessas. A data do parto foi marcada, uma vez que o método previa a indução – afinal, para que submeter a mulher a contrações e outras sensações desagradáveis?

No dia 9 de janeiro de 1964, Mireille e Ibrahim foram recebidos na clínica por lindas enfermeiras, que mais pareciam atrizes de cinema. O quarto era digno de hotel cinco estrelas e nem os médicos pareciam médicos, tal a descontração do ambiente. Depois de jogar conversa fora e comer algumas frutas, ela foi sedada e logo em seguida teve algo introduzido em suas veias. Acordou em meio a alucinações, com a sensação de que havia baratas andando por seu corpo. Gritava desesperadamente. Mas o bebê já havia nascido, e, por sorte, saudável.

Seis meses depois, soube-se – pelas páginas policiais dos jornais – que o método “revolucionário” era a aplicação de algum tipo de substância lisérgica e que o médico era discípulo de Thomas Leary, o guru do LSD. A farsa foi desmascarada pela polícia e a clínica foi fechada, em um caso que teve muita repercussão no Líbano.

Em meio a essa confusão, uma menina veio ao mundo. Na hora de escolher o nome, mais uma vez Ibrahim e Mireille evidenciaram suas diferenças. Ele fazia questão de um nome árabe, que honrasse as tradições. Queria que a menina se chamasse Alia. Já Mireille defendia um nome universal, que não revelasse de imediato a origem da filha. Sugeriu Carol. Diante do impasse, a solução foi adotar os dois nomes: a menina se chamaria Alia Carol. Assim, cada um teria a oportunidade de chamá-la pelo nome predileto. No final das contas, a vitória acabou sendo de Mireille, já que, com o tempo, quase todo mundo adotaria a escolha da mãe.

Adibe esteve na clínica na noite do nascimento de Carol. Quando a enfermeira, uma libanesa, saiu da sala de parto para anunciar que a criança era uma menina, Adibe disse a Ibrahim:

-- Deus te ama, pois as filhas são para sempre e jamais te entristecem.

Era uma referência nada sutil à relação entre os dois, mãe e filho. O momento parecia apropriado para manifestações conciliadoras, mas Adibe preferiu mais uma vez a crítica. Era o tipo de atitude que revoltava Ibrahim.

 

***

 

Mireille adorou a tarefa de organizar o enxoval do bebê. Apreciava o lado glamouroso de ser mãe – e apenas esse. O “trabalho sujo”, como trocar a fralda, dar banho e preparar a papinha, ficava por conta da babá. Afinal, era muito mais divertido ficar com a menina apenas quando ela estava limpa, risonha e sem fome. Não fazia o gênero de Mireille conversar com o bebê com aquela voz enternecida, meio abobada. Para ela, devia-se conversar com crianças da mesma forma que se conversava com adultos, e ponto final.

Ninguém se mostrava mais modificado pela presença da pequena Carol do que o avô, Zareh. Ele não era, até então, reconhecido como uma pessoa afetuosa. Ao contrário, tinha fama de durão entre os subordinados. Mas com a menina se transformara completamente: era o avô dos sonhos de qualquer criança: brincalhão, disponível e carinhoso.

Zareh ensinou desde cedo a Carol que ser autêntico em todos os momentos da vida era o segredo se uma existência feliz, sem arrependimentos. Mireille herdara dele essa virtude, a falta de hipocrisia.

Quando Carol tinha três anos, ficou gravemente doente. Uma infecção intestinal mal controlada acabou se espalhando e a fez permanecer três meses no hospital, sob tratamento constante de antibióticos. A presença mais fiel ao lado do leito da pequena Carol, da internação ao dia da alta, foi justamente a do respeitado engenheiro Zareh. Naqueles momentos ele se lembrava da sua pequena Mireille, que contraíra tifo na infância e chegou a ser desenganada pelos médicos. Foi durante aqueles tempos difíceis que os cabelos de Zareh ficaram totalmente brancos para sempre – e ele tinha somente 35 anos.

Quando Carol tinha cinco anos, o avô estabeleceu uma rotina sagrada com a neta. Ele a pegava em casa às seis da manhã para levá-la ao colégio. No caminho, compravam dos vendedores ambulantes que ficavam nos semáforos o batom de manteiga de cacau que a menina tanto adorava. Às onze horas, ao final da aula, ele a buscava e os dois iam juntos comer castanhas assadas, se fosse inverno, ou comprar colares de jasmim para pendurar no pescoço da menina, se fosse verão.

Avô e neta iam almoçar juntos, em um restaurante à beira-mar, próximo ao escritório de Zareh. Ficavam conversando longamente, sobre muitos assuntos, enquanto observavam as ondas. Quando acabava o almoço, Zareh dava um dinheirinho à neta para que ela comprasse um brinquedo na loja ao lado do restaurante.

          Depois levava a neta para o escritório. Ambientes corporativos podem ser aborrecidos para adultos, mas costumam ser fascinantes para crianças. Lá a menina se sentia o centro das atenções, uma verdadeira princesa. Sempre havia quem brincasse com ela, quem lhe desse papel e lápis coloridos e mostrasse algo novo e divertido.

          Foi no escritório do avô que Carol aprendeu a ler e a contar, sentada na cadeira de trabalho de Zareh. Com o passar dos anos, a admiração da neta pelo avô só crescia. Ele sabia tantas coisas sobre tantos lugares e pessoas! E mesmo assim era capaz de virar criança para brincar com ela... Quantas e quantas vezes os dedinhos dos pés da pequena Carol foram transformados em personagens de estórias infantis, ocasiões em que Zareh a segurava delicadamente e narrava os contos mais lindos que brotavam de sua imaginação...

          Apesar das muitas atribuições profissionais, Zareh não perdia a oportunidade de conviver com a neta. Depois da separação, ele até tivera algumas namoradas “oficiais”, mas o que realmente levava a sério era cuidar de Carol e aproveitar ao máximo a pequena companhia. Àquela altura, as discussões entre Ibrahim e Mireille já haviam se tornado freqüentes e o avô percebeu que seria importante salvar a neta daquele ambiente conturbado.

Ibrahim e Mireille brigavam por qualquer bobagem e, no calor da discussão, nenhum dos dois aliviava nas palavras. Depois tudo voltava ao normal, até a briga seguinte. Zareh logo percebeu que aquela relação não era das mais normais, mas, conhecendo bem a filha, admirava a paciência de Ibrahim. Os dois, sogro e genro, tinham uma ótima relação, de respeito e afeto mútuos.

O pai de Mireille, que cansara de conhecer os pretendentes, namorados e maridos da filha, via em Ibrahim um homem íntegro, talvez a última oportunidade para que Mireille finalmente entrasse nos trilhos. E Ibrahim havia encontrado em Zareh a figura paterna que lhe fazia muita falta desde a adolescência, quando o pai morreu.

UP TO HERE

Ibrahim crescera em um ambiente familiar pouco caloroso, especialmente após a morte do pai. Sua mãe não era dada a manifestações de carinho. Com a irmã, poucas vezes tivera um bom relacionamento. Certa vez, na infância, ela criticou o comportamento do irmão à mesa, afirmando que ele comia “como um porco”. Ibrahim respondeu que ela era de fato muito diferente, e que comia “como uma princesa”. Enquanto falava palavras tão gentis, segurou a cabeça da irmã com firmeza e a empurrou para dentro do prato de sopa.

A dedicação de Zareh à neta chegava a tal ponto que o pediatra da menina virou seu melhor amigo. Depois de ter criado Mireille com muitos mimos, ele aumentava ainda mais a dose com Carol. Assumiu sem pudor o papel de avô que não educa, apenas “estraga”. Em uma ocasião, a menina teve um pedido recusado por ele e não titubeou: correu ao quarto do avô, escolheu uma gravata, a encheu de talco, amassou bem e enfiou em um dos buracos do aquecedor. E o que fez Zareh ao descobrir a travessura? Deu uma gargalhada.

Quando não estava com o avô, Carol estava com a irmã caçula dele, Adline, alta executiva do porto de Beirute que nunca se casara – provavelmente por se dedicar demais à carreira. Nem por isso deixava de ter seus namorados e de se produzir. Passava horas se maquiando e preparando o cabelo. Adline também costumava levar a menina ao escritório, onde as secretárias a deixavam brincar com as máquinas de escrever.

Carol adorava passear de carro com o avô e o motorista, Omar, que o acompanhava havia muitos anos. Era uma relação divertida, que há muito deixara de ser simplesmente de patrão e empregado. Zareh era rigoroso no trato com os subordinados, mas o tempo de convívio havia concedido direitos especiais a Omar. Um implicava com o outro o tempo todo. Nos restaurantes, Omar sentava-se à mesa com Zareh, como velhos amigos que eram. A menina achava graça em tudo aquilo, especialmente em um estranho hábito de Omar: manter a unha do mindinho da mão direita crescida apenas para coçar ou limpar o ouvido, cacoete que repetia compulsivamente.

Um dia, Zareh levou a neta para ajudá-lo a escolher um novo carro. Ele valorizava o conforto por ser obeso, mas não se importava com detalhes de luxo. Só que um modelo com vidro elétrico havia acabado de chegar às lojas, e a neta adorou a brincadeira de subir e descer o vidro apenas apertando um botão. Era um acessório que encarecia significativamente o carro, mas diante da sentença de Carol – “quero este!” –, Zareh não hesitou em fechar o negócio.

 

***

 

Carol tinha quatro anos quando Ibrahim começou a pressentir problemas no Líbano. A fazenda ficava próxima à Síria, e por conta disso ele tinha muitos contatos com muçulmanos vindos da fronteira. Conflitos de fundo religioso – sempre os mais difíceis de solucionar – estavam em ebulição no país.

Os turcos haviam dominado os árabes durante séculos. No século XVI, os maronitas e duas outras facções religiosas – os drusos e os xiitas – se refugiaram no Líbano para escapar de seus perseguidores. Em 1841, os otomanos tentaram controlar o Líbano, dando início a sangrentas guerras civis. Vinte anos depois, os turcos concederam a independência ao Líbano, acordo respaldado por sete potências da época: França, Inglaterra, Prússia, Rússia, Áustria, Hungria e Itália.

Uma nova constituição entrou em vigor em 1863, determinando a criação de um Conselho Supremo constituído por 12 membros distribuídos entre as facções religiosas do país. Mas o governador-geral deveria ser de credo cristão católico, aprovado pelas potências signatárias e com mandato de cinco anos. Assim, oito membros do clã Mutassarif governaram o Líbano entre 1861 e 1915. Foi nesse período que muitos libaneses desiludidos partiram para a emigração.

Ao fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o Líbano passou a ser colônia da França, condição que se prolongaria até 1943. Em 1926, a Constituição estabeleceu uma nova regra para a composição do poder no país: o presidente seria sempre um cristão maronita e o primeiro-ministro um muçulmano sunita.

No final dos anos 40, contudo, o Líbano recebeu 170.000 refugiados palestinos, vindos do território israelense. A chegada de tantos imigrantes fez a população muçulmana crescer subitamente e a levou a pleitear cargos mais importantes no governo, causando crescente tensão entre cristãos maronitas e muçulmanos.

Assim teve início uma nova guerra civil libanesa de origem religiosa. Em 1958, grupos muçulmanos se rebelaram contra o presidente maronita Camille Chamoun. Enquanto Chamoun era claramente alinhado aos Estados Unidos, os rebeldes tinham ligações com o regime soviético. As tropas norte-americanas invadiram o país e a crise foi temporariamente contornada com a substituição do presidente e o estabelecimento, mais uma vez, de novas regras para a composição do governo, criadas sob supervisão da Organização das Nações Unidas (ONU).

            Embora os vários grupos religiosos do país estivessem representados no novo governo, logo afloraram as velhas divergências em relação ao poder de cada grupo. Uma nova leva de refugiados palestinos chegaria ao Líbano após o massacre na Jordânia que ficou conhecido como “Setembro Negro”, em 1970. A situação fugiu do controle quando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) instalou seu quartel-general em Beirute e passou a atacar Israel a partir do território libanês, gerando represálias israelenses.

          Surgiu então o Partido Falangista, de extrema-direita, que pregava a expulsão dos palestinos. Esse partido logo contou com o apoio dos cristãos maronitas, interessados em preservar o poder em suas mãos. Do outro lado, jovens muçulmanos se organizavam em milícias, com apoio da OLP.

Juntando as peças do quebra-cabeça e vislumbrando o futuro tumultuado que o Líbano enfrentaria, Ibrahim achou que sair do país e tentar a vida em outro lugar seria uma boa idéia. O Brasil aparecia como primeira opção, não só porque ele já conhecia e tinha parentes no gigante sul-americano, mas também pelas boas possibilidades de se estabelecer como homem de negócios, exatamente como seu pai fizera.

Quando esteve no Brasil, Shahim uniu-se aos parentes em vários negócios, entre os quais uma tinturaria e uma grande tecelagem. Também virou sócio dos irmãos de Adibe, que produziam papel e papelão. Ibrahim planejava se inteirar desses negócios e começar a vida no Brasil trabalhando com a família.

            Ele não precisou de muitos argumentos para deixar Mireille entusiasmada com a idéia da mudança para o exótico Brasil. Em primeiro lugar, porque ela sempre adorou novidades. Além disso, uma cartomante havia previsto, alguns anos antes, que ela viveria em um “grande país verde”. E essa cartomante tinha crédito, porque havia também previsto que Mireille se casaria com um estrangeiro que morava no Oriente Médio (o que havia ocorrido no relacionamento com Olen Webb). Havia, ainda, uma série de coincidências que ela passou a interpretar como “sinais”: o Hotel Kadri ficava na Brazil Street e a boate mais badalada de Beirute chamava-se Macumba, palavra cujo significado ela desconhecia, mas que tinha alguma relação com o Brasil.

E Mireille sabia que, se a aventura não desse certo, seu pai continuaria no Líbano pronto para recebê-la. Mudar para o Brasil era uma decisão que, afinal de contas, não envolvia grandes riscos.

E o Brasil parecia ser uma terra fascinante. As notícias que chegavam sobre o país construíram na mente de Mireille a imagem de um lugar cheio de glamour. Havia as praias, o carnaval, o Copacabana Palace, Tom Jobim, a Bossa Nova, Brasília, Búzios, o Cristo Redentor. Tudo isso reforçado por filmes que fizeram sucesso no mundo inteiro, como “Uma noite no Rio”, estrelado por Carmen Miranda e Don Ameche. O Brasil estava na moda; era o país do futuro.


Porto de Nápoles, Itália, 1969

-- Pai, quando vamos chegar na Itália?

-- Já chegamos! Aqui é a Itália!

          -- Mas você disse que a Itália era diferente, cheia de música, igrejas coloridas e pombos na rua. Aqui é igual àquele lugar antes de a gente pegar o navio de novo.

          -- Que lugar, filha? Portugal?

          -- É pai, aquele lugar que é igual aquele outro que a gente foi antes dele.

          -- Onde? A Espanha?

          -- Acho que sim. É tudo igual, pai...

          Naquele momento a menina sentiu-se triste e decepcionada. Ela esperava chegar ao país colorido e alegre que imaginara, mas já estava quase se dando por vencida. Todos os lugares pelos quais eles passavam eram escuros e velhos.

          -- Pai, o lugar que você disse que vai me levar para morar também é desse jeito?

          -- Filha, o lugar que escolhi você vai gostar, porque é muito diferente.

-- Quanto diferente?

          -- Muito, muito diferente.

          -- É? Diferente como?

          -- É verde.

          -- Todo verde? Bem verde?

-- Hum, hum.

          -- Como é mesmo o nome do lugar?

          -- Brasil. Brasil com “s”.

          Depois de parar em dez diferentes portos ao longo dos dois meses de viagem, a família finalmente desembarcou no porto de Santos no dia 6 de dezembro de 1969. Já sabemos que o desencanto foi imediato para Mireille. Não apenas porque ela achou o porto imundo, com sujeira espalhada por todos os lados e as pessoas gritando feito malucas, mas também pelo calor infernal e úmido que fazia as roupas grudarem no corpo.

Ao tentar pedir informação para um guarda, Mireille ficou horrorizada com a forma grosseira como foi tratada. E houve ainda uma imensa dificuldade para encontrar a bagagem – que, segundo a declaração de bens registrada na embaixada brasileira em Beirute, incluía uma TV, um toca-discos, um jogo de talheres de prata, 15 copos de cristal, 8 quadros de pintura a óleo, uma espingarda de caça e um projetor de cinema.

Tudo transcorreu da pior forma possível naquele primeiro dia em território brasileiro. Mas pelo menos estavam em terra firme e Mireille não seria mais atormentada pelos enjôos que a acompanharam do início ao fim da longa viagem a bordo do Eugenio C., famoso navio da época.

Apesar dos enjôos de Mireille e dos chatíssimos treinamentos para naufrágio, no geral a viagem transcorrera bem. As exceções foram o dia em que Carol se perdeu dentro do navio durante algumas horas, para desespero especialmente de Ibrahim, e um outro em que ela precisou levar vários pontos no queixo depois de escorregar na piscina durante a festa de passagem pela Linha do Equador.

A recepção no Brasil estava por conta dos familiares de Ibrahim, e isso era um problema para Mireille. Como Adibe tinha grande influência sobre todos, a nora pressentia que não teria vida fácil.

Eles foram morar justamente na casa das irmãs de Adibe, em São Paulo. A sensação era a de estar cercada por quatro cópias da sogra – que, desde o primeiro dia, deixaram claro que iriam vigiá-la de perto. Afinal, tinham sido devidamente alertadas sobre o comportamento pouco convencional de Mireille. Mas a hóspede não deixava por menos e fazia de tudo para escandalizar as tias solteironas de Ibrahim. Nem era preciso muito esforço, diga-se de passagem.

Dois meses depois do desembarque, Mireille teve a oportunidade de presenciar o tão falado carnaval brasileiro – e constatar que suas atitudes “avançadas”, como os shorts que usava nos clubes e praias do Líbano, eram fichinha perto do que as brasileiras faziam naquela semana de festa.

Mireille considerava as brasileiras excessivamente descuidadas com a forma de se vestir, de se maquiar e de arrumar o cabelo. Achava as libanesas bem mais elegantes, enquanto julgava as brasileiras narcisistas.

-- Elas se acham as mais bonitas do mundo!, criticava.

Depois do primeiro ano, Ibrahim começou a se assentar melhor em São Paulo e o casal se mudou com a filha para um apartamento na Rua Cubatão, no Paraíso.

Bastou se livrar do convívio diário com as tias de Ibrahim para que Mireille começasse a simpatizar mais com o país. Em 1970, o Brasil foi tricampeão mundial de futebol e a euforia patriótica contagiou a família de imigrantes. Carol aprendeu a cantar refrões ufanistas, como “este é um país que vai pra frente” ou “90 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção!”.

Os desmandos da ditadura militar não apareciam para recém-chegados. Era como se não houvesse censura e repressão. Tudo o que se percebia era um país pujante, em franco desenvolvimento econômico.

Mireille adorava a Música Popular Brasileira, principalmente canções animadas como as de Jorge Ben: “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza...”. E havia frutas maravilhosas e exóticas como a jaca, que logo se tornou a preferida de Carol.

Em certos momentos, o glamour se aproximava ao do Líbano nos bons tempos. A entrada para o Guarujá não chegava a ser paga, como acontecia nas praias mais sofisticadas da região de Beirute, mas era comum encontrar, no balneário paulista, mulheres superproduzidas, maquiadas e cheias de jóias caminhando na faixa de areia como se estivessem nas calçadas de Saint Tropez.

            Um dos locais mais conhecidos do Guarujá é chamado até hoje de Morro do Maluf, homenagem a Edmond Maluf, primo-irmão de Shahim que ganhou muito dinheiro fazendo investimentos no Brasil. Era um homem livre, de comportamento avançado e muito moderno para a sociedade da época. Adorava organizar festas na casa que construiu no alto do morro, marco divisório entre as praias de Pitangueiras e da Enseada. Festas tão luxuosas que as taças de cristal eram jogadas na lareira apenas por celebração. Conta a lenda que todas as mulheres convidadas para as festas de Edmond eram recebidas com uma orquídea – e que, em alguns casos, a flor era acompanhada por uma bela jóia.             No final dos anos 40, contudo, os negócios já não iam tão bem e o playboy se endividou. Sem ter como realizar o projeto de um condomínio de luxo, deixou o morro como pagamento para um dos credores e mudou-se para a Europa. Amigos e familiares sentiram falta daquele homem que representava o Líbano moderno e sofisticado, faceta que a maioria dos brasileiros desconhecia – a imagem dos libaneses era cada vez mais associada à dos comerciantes e mascates satirizados nos programas humorísticos, um Líbano que se reduzia à Rua 25 de Março, o mais conhecido centro de comércio em São Paulo.  ***             Logo nos primeiros tempos no Brasil, Ibrahim começou a ocupar o espaço deixado por Zareh no coração de Carol. Era ele quem a acompanhava na escola e ajudava na lição de casa. Mireille não se interessava por nada disso. Assuntos do cotidiano, como ir ao supermercado e pagar contas, jamais lhe despertaram interesse.

Ibrahim até assumia tarefas normalmente consideradas femininas, como confeccionar fantasias para festas escolares e apresentações artísticas. Certa vez, a escola enviou aos pais uma carta dizendo que todas as crianças deveriam ir vestidas de anjo para uma apresentação teatral. As mães começaram a se dedicar, então, a preparar as fantasias dos filhos e filhas. Compraram os tecidos, os enfeites e logo partiram para o trabalho na máquina de costura. Mireille, contudo, não se interessou nem um pouco pela tarefa, que considerava “uma chatice”. O trabalho acabou sobrando para Ibrahim.

A visão de um homem sobre uma fantasia de anjo para ser usada na escola é muito diferente da visão feminina. Ibrahim achou que bastaria ir a uma papelaria, comprar uma cartolina, recortá-la em formato de asas, grampear o que fosse preciso e colar o conjunto, com fita adesiva, nas costas da menina. Tudo com a praticidade tipicamente masculina.

No dia da apresentação, Carol, com sua fantasia de cartolina, deparou-se com as colegas superproduzidas, com fantasias cor-de-rosa cheias de brilhos, babados e organzas – algumas tinham até asas com penas de verdade! Para piorar, a fita adesiva improvisada por Ibrahim desgrudou no meio da apresentação e a fantasia de Carol despencou, obrigando-a a juntá-la do chão e seguir até o fim segurando-a desajeitadamente. Na platéia, Mireille aplaudia tudo com entusiasmo e parecia não perceber o constrangimento da filha.

Como cabelo de menina costuma dar muito trabalho para a mãe, Mireille optou por um corte curto para Carol desde que ela era pequena. Só bem mais tarde, por volta dos 15 anos, a menina teve a chance de deixá-lo crescer.  Mireille argumentava que Coco Chanel, ícone máximo para as mulheres da época, certamente aprovaria o corte à la garçonne.

-- Essas meninas de cabelos longos são um bando de lagartixas oleosas, vivia repetindo.

Um dia, triste por não ter tranças como as amigas do colégio, Carol caiu no choro. Mireille logo encontrou uma solução: comprou uma peruca com um belo rabo-de-cavalo. No dia seguinte, Carol apareceu na aula com aquele estranho adereço, para estupefação das colegas e professoras.

O envolvimento materno de Mireille era totalmente fora dos padrões. Houve uma ocasião em que ela decidiu participar da preparação de uma apresentação teatral da filha na escola, mas foi basicamente por interesse próprio. As crianças podiam se vestir livremente para o espetáculo, e se havia algo de que Mireille gostava e entendia era de moda.

Em vez de levar a menina à loja para escolher o tecido, Mireille fez tudo sozinha, com base no próprio gosto. Assim, enquanto as outras se apresentaram com roupas tipicamente de criança – vestidos cor-de-rosa, floridos etc –, Carol subiu ao palco com um vestido quadriculado de preto e branco (pied-de-poule, diria Mireille), acompanhado por um chapéu preto. Era a última moda, sem dúvida. Carol estava muito chique... Para os padrões de uma balzaquiana. Tudo o que a menina desejava naquele momento, contudo, era ter um vestidinho cor-de-rosa como as colegas.

Mireille considerava absurdo o comportamento das mães que queriam saber o tempo todo das professoras como os filhos estavam se saindo.

-- A escola sabe o que faz, não precisa dar satisfações.

Achava, também, que os estudos não precisavam ser levados muito a sério. Bastava passar de ano. Nada de ser a primeira da classe: importante era ser feliz. Quando opinava sobre a escola ideal para a filha, Mireille dizia apenas que a menina devia ser preparada para viver em qualquer lugar do mundo e se relacionar com pessoas de qualquer procedência. Tratava-se da mesma preocupação que demonstrara ao insistir para que a menina tivesse um nome universal. Havia nessa forma de ver o mundo a influência da infância em um país árabe como o Líbano, repleto de manifestações, veladas ou explícitas, de intolerância. Nesse ponto a opinião de Mireille foi levada em conta, já que, assim que a família chegou ao Brasil, Carol foi matriculada em um colégio inglês, o Saint Paul’s.

A importância concedida ao conhecimento formal era mais uma grande diferença entre Mireille e Ibrahim. Ele adorava matemática a ponto de lançar-se a exercícios de cálculo como mero passatempo. Era apaixonado também por história – guardava centenas de datas e nomes graças à prodigiosa memória. Certa vez, quando um funcionário da companhia telefônica informou que o novo número da casa seria 815-3945, Ibrahim comentou com o rapaz que seria fácil de memorizar graças à Segunda Guerra (1939 foi o ano em que a guerra começou e 1945 o ano em que o conflito terminou). É claro que o interlocutor não entendeu nada e saiu de lá achando aquele “turco” meio maluco.

Mireille não só deixava de acompanhar o marido nas elucubrações intelectuais como não demonstrava especial admiração pelos conhecimentos e pela capacidade de raciocínio de Ibrahim, o que o deixava magoado. Não foram poucas às vezes que, em meio às discussões, embaladas por Chopin ou Vivaldi a toda altura, ele a acusou de futilidade, de só se interessar pelas coisas superficiais da vida. Ela nem ficava muito irritada, provavelmente por reconhecer que ele tivesse uma boa dose de razão. Mas essa razão em nada mudava os fatos da vida. Quantos haviam filosofado sobre o homem e o mundo e morreram desiludidos ao constatar que não conseguiram mudar o destino da humanidade?

Ibrahim tentava conduzir a pequena Carol por um caminho menos “alienado”. Às vezes ficava entusiasmado ao perceber o interesse da filha por fatos e personagens do passado, que ele se esforçava para apresentar de forma lúdica, como se fossem protagonistas de histórias cheias de aventura. Outras vezes, ao perceber a dificuldade da filha para entender um exercício de matemática ou aprender a jogar xadrez, ele se conformava: afinal de contas, a menina também era filha de Mireille!

 

***

 

Carol havia se acostumado, desde pequena, a viver naquele ambiente pitoresco que era a casa dela. E logo aprendeu que não havia o que questionar, muito menos do que reclamar. Precisava aceitar os pais como eles eram.

Na cabeça da menina, qualquer sinal de revolta que ela viesse a demonstrar agravaria ainda mais uma situação que já era delicada. Os pais discutiam muito, às vezes violentamente. Carol se sentia responsável pela tarefa de buscar a harmonia da família. Para isso era preciso agir com passividade, evitando ser mais um foco de conflito.

          O jeito de ser de Ibrahim e Mireille trazia muitos momentos de embaraço e constrangimento, especialmente na infância, mas em outras ocasiões era também motivo de orgulho. Na adolescência, a forma franca e aberta como Mireille se dirigia à filha, inclusive na frente das colegas, era algo que Carol apreciava.

Enquanto as outras meninas enfrentavam os problemas típicos da adolescência, muitas vezes provocados pela falta de comunicação com os pais, disso Carol não podia se queixar. As amigas invejavam o relacionamento dela com a mãe, além do companheirismo que demonstrava ter com o pai. Todos acreditavam que a vida na casa de Carol era muito divertida, mas em muitos momentos a menina chegava a ter certeza que os pais eram malucos de verdade.

Uma das formas que Mireille encontrou para suportar melhor a vida longe do Líbano foi buscar uma “tribo” com a qual se identificasse. Ibrahim se satisfazia em freqüentar o Clube de Zahle, que reunia imigrantes oriundos da mesma cidade que ele. No clube havia jogos de carta praticamente todas as noites, e almoços em família nos finais de semana.

Tudo isso era monotonia demais para Mireille. Depois do primeiro ano no Brasil, em que teve que conviver com a vigilância das tias solteironas de Ibrahim, ela se sentiu livre para sair à noite, uma de suas paixões. No prédio da Rua Cubatão para o qual havia se mudado, conheceu uma mulher que se tornaria sua grande amiga e companheira de badalações, Neném, divorciada e mãe de duas filhas. Mireille tornou-se amiga dos amigos de Neném, a maior parte músicos e boêmios, e passou a freqüentar casas noturnas com esse grupo.

Mireille levava a filha para a noite, como se Carol fosse mais uma de suas amigas adultas, e não uma criança com dez anos de idade. E a menina adorava, claro. Um dos lugares prediletos do grupo era o Oba Oba, onde Sargentelli costumava se apresentar com suas mulatas. Enquanto Mireille jogava conversa fora com os amigos, a filha brincava com as filhas de Neném, que tinham a mesma faixa de idade e também eram levadas pela mãe. Elas tomavam sorvete, ficavam desenhando e batiam papo com os garçons ou as “profissionais da noite” que freqüentavam o lugar. A influência daqueles tempos foi tão forte nas crianças que Clara, a filha mais velha de Neném, se tornaria dançarina profissional de samba, fazendo carreira internacional na Itália.

As saídas noturnas de mãe e filha, juntas, se estenderam por anos, tanto que o aniversário de 15 anos de Carol foi celebrado no bar e restaurante A Baiúca, com Cauby Peixoto cantando e seu irmão tocando piano especialmente para ela.

Enquanto isso, Ibrahim fazia seus programas com a colônia libanesa. Jamais foi ao A Baiúca e nunca cogitou a hipótese de acompanhar a mulher em uma das noitadas. Tanto ele como Mireille encaravam as diferenças de interesse como absolutamente naturais e não manifestavam qualquer discordância sobre a opção de fazer programas noturnos separados, apesar da estranheza que a ausência do outro causava nos respectivos círculos sociais.

Cada um gostava de cultivar relacionamentos próprios, com os quais sentissem afinidades pessoais – não havia amigos “do casal”. Ambos estavam cientes de que essa situação poderia abrir espaço para o interesse por outros homens ou mulheres, mas ciúmes, surpreendentemente, nunca foi motivo de brigas entre Mireille e Ibrahim. Eles eram capazes de brigar por qualquer outra razão, menos essa. Ao menos é o que parecia.

Ibrahim permitia que a filha acompanhasse a mãe possivelmente porque seria um empecilho para que ela se envolvesse com outro homem, mas não apenas por isso: no fundo ele sempre admirou a leveza com que Mireille encarava a vida e gostaria que a filha herdasse (em parte, é claro) essa característica, que não identificava em si. Mireille representava muito do que Ibrahim não pôde ser, pelos padrões de sua criação. Ele queria que a filha tivesse acesso a tudo o que ele não teve. E de fato, graças à mãe, Carol tinha a oportunidade de freqüentar lugares que suas amigas de colégio nem imaginavam que existissem.

          Os ambientes não eram dos mais saudáveis para uma criança, mas a menina nem desconfiava que aquilo pudesse ser chamado de “inadequado”. Essas experiências certamente contribuíram para que Carol crescesse sem preconceitos, tolerante em relação às diferenças do mundo. As profissionais do sexo que freqüentavam o A Baiúca eram, para ela, apenas mulheres divertidas e bem arrumadas. O que faziam para ganhar a vida não importava – afinal, esse tipo de preocupação ainda não fazia parte dos problemas da infância.

Problema, isso sim, era acordar cedo no dia seguinte para ir à escola. Mas Carol disfarçava bem e conseguia esconder sua vida paralela de freqüentadora da noite. As professoras nem chegavam a desconfiar.

A menina adorava quando chegava com a mãe das aventuras noturnas e as duas preparavam sanduíches gigantes, ligavam a TV e assistiam um daqueles filmes B de terror que costumavam passar de madrugada. Muitas vezes, Ibrahim chegava de seus programas quase ao mesmo tempo, se juntava a elas e contava todas as fofocas do clube – quem havia brigado, quem tinha perdido no jogo etc. A conversa em frente à TV freqüentemente ia até o amanhecer.

Em momentos como esse, Carol tinha certeza de que, apesar de tudo, seus pais se amavam muito. Como poderia pensar diferente se, a cada Dia das Mães, Ibrahim fazia questão de acordar a filha bem cedo e sair com ela para percorrer brechós, livrarias, lojas de discos e voltar com o porta-malas do carro repleto de presentes para Mireille?

Esses eram os pequenos momentos de “loucura” consumista de Ibrahim. Já Mireille costumava nem olhar o preço daquilo que gostava. A forma como ela lidava com o dinheiro passou a ser uma das fontes mais constantes de desentendimentos com Ibrahim depois que eles se mudaram para o Brasil. No Líbano o problema não se manifestara tão intensamente, porque havia a segurança financeira proporcionada por Zareh. Mal acostumada pelo pai, Mireille nunca se habituou a economizar, a planejar uma compra, a informar-se sobre a situação financeira em casa antes de assinar um cheque. Com o natural aumento dos gastos em decorrência do nascimento de Carol e da mudança para um país diferente, essa característica de Mireille passou a incomodar ainda mais a Ibrahim.

-- Precisamos guardar dinheiro para ter uma casa, pagar a escola da nossa filha! – ele esbravejava.

Ibrahim vivia em constante dilema, entretanto, porque nada lhe dava mais prazer do que agradar à mulher. Mas ele detestava a mania dela de ficar emburrada, tal qual uma criança, quando pedia algo e não ganhava.

Problemas financeiros à parte, ambos eram muito generosos com os outros – parentes, amigos, simples conhecidos ou até mesmo desconhecidos. Caso simbólico era o de Eddie, um amigo de Ibrahim que não tinha um tostão e nem sequer onde morar. As namoradas lhe davam guarida eventualmente, mas nos períodos de entressafra ele recorria aos amigos. Um dos abrigos mais freqüentes em Beirute era a casa de Ibrahim, mesmo depois de casado.

Algum tempo depois da mudança para São Paulo, Ibrahim e Mireille foram surpreendidos com a visita de Eddie, que também havia decidido se aventurar no Brasil (onde, é claro, não tinha onde ficar). Como sempre, Ibrahim o recebeu pelo tempo necessário – meses a fio...

 

***

 

Depois dos dois primeiros anos trabalhando com os tios na Compapel, uma fábrica de caixas de papelão, Ibrahim estava insatisfeito. Ao ingressar nos negócios da família no Brasil, ele esperava ter uma atuação mais estratégica, com um cargo na administração, mas não conseguia passar da condição de mero vendedor. E, como não obtinha acesso às informações que desejava sobre a situação das empresas, começou a desconfiar de irregularidades. Era uma situação complicada, porque seus tios haviam recebido de Adibe carta branca para cuidar dos negócios e do filho no Brasil.

O maior empecilho no caminho de Ibrahim era Tawil, o irmão caçula de Adibe. Os dois tinham quase a mesma idade – o tio era apenas dois anos mais velho que o sobrinho. A proximidade etária fez nascer uma relação de rivalidade entre os dois. Tawil detestava Ibrahim porque na adolescência de ambos o sobrinho havia lhe roubado a condição de “queridinho” da mãe e da irmã mais velha. Ainda assim, quando Tawil ingressou na faculdade de medicina, Adibe não apenas bancava o curso como ainda dava um dinheiro extra todo mês para que o irmão gastasse livremente.

Quando seu pai morreu, Ibrahim foi passar algum tempo no Brasil, com a avó, tias e tios. Tinha 16 anos e foi tratado como o novo caçula da família, até porque precisava de carinho adicional por estar abalado pela morte do pai. Tawil teve que ceder o quarto para Ibrahim e até o lugar na mesa, à direita da matriarca.

Como financiava Tawil, Adibe se dava ao direito de opinar sobre sua vida afetiva. Ele foi apaixonado por uma bela italiana chamada Irene Bianchi, mas consta que Adibe não autorizou o namoro e a relação foi interrompida. Para Adibe, casamento por amor era uma hipótese que simplesmente não deveria ser levada em conta – mesma razão que a levou a classificar como estupidez o fato de Ibrahim ter escolhido uma “desclassificada” como Mireille.

Sempre que possível, Zareh fazia questão de patrocinar a viagem da filha e da neta a Beirute. Nessas ocasiões, Mireille matava um pouco da imensa saudade que sentia do pai, dos amigos de infância, dos companheiros da época de badalação e da cidade. Nos dias que passava no Líbano, relembrava a vida livre e despreocupada dos tempos da adolescência.

Quando voltava ao Brasil, Mireille sentia a vida excessivamente monótona. Face às limitações orçamentárias, fazer compras deixou de ser um passatempo ao qual ela podia se lançar despreocupadamente, como nos tempos de solteira.

O que ela chamava de monotonia era uma vida muito mais agitada do que a desfrutada pela maior parte das mulheres de sua época, contudo. Mireille trabalhou como assistente do estilista Ugo Castellana, dando conselhos sobre moda a damas da alta sociedade paulistana. Durante um período foi também vendedora independente de roupas de grife, o que a fazia viajar sistematicamente à Argentina e à Europa para selecionar produtos que não existiam no mercado brasileiro.

A soma dos problemas que encontrava no Brasil – a suposta monotonia que a torturava no cotidiano, as dificuldades de adaptação aos costumes do país, a saudade do Líbano, as crises financeiras, as freqüentes discussões com Ibrahim – fez Mireille tomar uma decisão em 1973: ir para Beirute com a filha, sem data para voltar. Na realidade, sem prometer que voltaria.

Como normalmente ocorria, o casal não fez planos a respeito. A decisão de Mireille era só dela e não foi discutida antecipadamente com Ibrahim. Ele, por sua vez, não opôs resistência: deixou-a ir, pedindo apenas que mantivesse contato. Não chegaram a discutir se era uma mudança definitiva. Houve apenas uma leve preocupação com os estudos de Carol, mas o problema foi resolvido quando a professora se comprometeu a abastecê-la de cadernos e livros suficientes para meses de estudos longe da escola.

A viagem incluiu escalas em Paris e em Dakar, capital do Senegal. Mireille e a filha foram carinhosamente recebidas por Zareh, como sempre, e assim tiveram mais uma vez a oportunidade de reviver os tempos dos quais sentiam muita saudade.

Carol passava seus dias no Líbano entre o hotel para o qual o avô havia se mudado e a casa de Adibe. Em ambos os lugares, tinha plena liberdade para abrir a geladeira a qualquer hora e se servir. Resultado: ganhou 14 quilos em seis meses, algo assustador para uma menina de apenas 10 anos. Mireille, que sempre deu muito valor à beleza física e detestaria ter uma filha obesa, decidiu agir drasticamente para conter o aumento de peso da filha. Houve dias seguidos em que a obrigou a comer apenas repolho e couve-flor.

Alguns acontecimentos durante essa visita ao Líbano mudariam para sempre a visão de Carol sobre a vida. A guerra civil havia alterado drasticamente a situação financeira e o padrão de vida dos avós. Enquanto Zareh vivia em um hotel, Marie se viu obrigada a encontrar uma moradia mais modesta. Mudou-se para um pequeno apartamento de um dormitório em um bairro de palestinos, onde Carol passava os finais de semana.

          Desses encontros nasceu uma nova relação entre a avó, até então distante e misteriosa, com a neta. Marie buscava Carol no hotel de Zareh e de lá as duas embarcavam em um ônibus, cumprindo um trajeto de quase uma hora. Era tempo mais que suficiente para que a avó falasse de sua vida de forma leve e alegre, ainda que incluísse passagens tristes como a surdez do irmão preferido, causada por meningite, ou o dia em que o pai alcoólatra perdeu tudo numa mesa de jogo.

          Marie era uma mulher doce e frágil, mas a vida lhe ensinara a se proteger dos perigos. O bairro em que morava era pobre, sujo, bagunçado e repleto de conflitos políticos e sociais. Na primeira visita, Carol sentiu medo. Pouco a pouco, contudo, aquele lugar passou a transmitir-lhe uma inesperada sensação de segurança e conforto. Era uma comunidade que, apesar das dificuldades, oferecia tudo o que era necessário para ser feliz.

As portas dos apartamentos do conjunto de prédios em que a avó de Carol morava permaneciam abertas para que as vizinhas pudessem passar o dia conversando enquanto cozinhavam. O trabalho de lavar as roupas, o mais extenuante de todos, era compartilhado. Nos corredores as crianças brincavam despreocupadamente e a música árabe, a todo volume, ecoava pelos vãos das escadas do edifício. Enquanto as meninas trocavam suas bonecas, os meninos brincavam com as tampas de refrigerantes que recolhiam ou de bola, quando aparecia uma no bairro. O programa mais sofisticado era ir ao cinema, aos sábados, assistir comédias ingênuas.

Nessa época Carol fez amizade com o menino do apartamento em frente ao da avó. Miúdo, de pele clara e olhos esverdeados, ele tinha uma coragem que até então Carol não sabia que crianças podiam ter. Fazia as compras de casa sozinho, falava com os feirantes da rua e com os outros adultos de igual para igual, pegava o ônibus para atravessar a cidade e buscar alimentos que não existiam nos mercadinhos locais.

Certa vez o menino convidou Carol para o cinema, prontificando-se a comprar os ingressos e os refrigerantes com o dinheiro que havia economizado ao longo do mês. Fazia questão. Combinaram o programa e o menino esperou na porta do cinema por uma hora, mas Carol não apareceu. Sua avó Adibe já havia feito outros planos para ela e, como o rapaz não tinha telefone, Carol não pôde avisá-lo.

A menina nunca mais esqueceu daquele dia. De como chorou ao imaginar o amigo esperando, certamente convencido de que ela era mais uma riquinha cristã que não se importava com os sentimentos dos já tão maltratados palestinos. Para Carol, contudo, ele era muito melhor e mais importante que todos os amigos que fizera numa das mais caras escolas de elite no Brasil. A menina jurou, naquele dia, que jamais voltaria a magoar um amigo daquela forma.  

Naquela semana, a menina almoçou na sua lanchonete favorita, Wimpy’s, com a avó Marie. Enquanto as lágrimas corriam pela face de Carol ao conversarem sobre a desilusão que ela causara ao amigo, a avó lhe dizia, com seu semblante sempre tranqüilo, que muitas outras vezes a vida a colocaria em situações nas quais não desejaria estar. O importante, nesses casos, seria buscar a oportunidade de corrigir os erros cometidos. Carol infelizmente não teve esta oportunidade.

          Naquele mesmo mês, um ônibus cheio de palestinos explodiria no centro de Beirute, origem de tensões que afundariam o país na longa guerra civil que oporia os cristãos maronitas à coalizão formada por drusos e muçulmanos.

Aos poucos, Mireille e Carol começavam a sentir e a demonstrar a vontade de voltar ao Brasil. Depois de quase um ano no Líbano, elas desembarcaram em São Paulo e Ibrahim pôde matar as saudades.

 

 

 

***

 

 

A fazenda de Kfardabach era a última amarra que ainda prendia Ibrahim a um passado que, cada vez mais, ele sentia que era preciso abandonar. Desde que deixara o Líbano, ele havia autorizado a venda da propriedade, mas a mãe dizia que não estava fácil encontrar um comprador. De fato, fechar um negócio daquele porte em meio a uma guerra era algo improvável.

E ainda havia uma condição imposta por Ibrahim: que a fazenda não fosse parar nas mãos de uma determinada família de colonos com a qual não simpatizava – não apenas por não terem vínculos ancestrais com Zahle, mas sobretudo por terem enriquecido de forma rápida e estranha, com indícios de atividades ilícitas. Ibrahim desconfiava que essa família mantivesse ligações com a Síria, que já há algum tempo demonstrava a intenção de invadir o Líbano. E Kfardabach, localizada entre altas colinas, poderia ser um ponto estratégico durante um eventual conflito.

Ibrahim deixara ordens expressas para que a propriedade não fosse negociada com essa família. Com o passar dos anos e a dificuldade para vender a fazenda, era provável que tal determinação tivesse arrefecido. Quando o negócio foi finalmente fechado, ele não demonstrou maior interesse em saber quem era o comprador, tamanha a satisfação em receber a bolada em um momento de necessidade. Da mesma forma, a mãe, a irmã e o cunhado se alegraram muitíssimo com o negócio, pois teriam direito a uma comissão. Para acertar todos os detalhes e pegar o dinheiro, Ibrahim marcou um encontro com Adibe em Paris, ocasião em que tudo transcorreu de forma muito cordial.

Ibrahim até perguntou sobre o comprador da fazenda, mas Adibe deu respostas evasivas, contando que toda a negociação se dera por meio de um procurador. Pressentindo algo que não aprovaria, Ibrahim achou melhor não insistir naquela conversa para não descobrir o pior e se sentir obrigado a recusar o negócio.

Anos depois, no entanto, um amigo libanês visitou Ibrahim no Brasil. No meio da conversa, esse amigo disse:

-- Você deu muita sorte de vender a fazenda, ainda mais para aquela gente.

-- Como você sabe para quem foi vendida a fazenda? – rebateu Ibrahim.

-- Ora, o Líbano inteiro sabe.

O amigo confirmou que os compradores eram mesmo da família que Ibrahim detestava. Mostrando-se revoltado, embora certamente tenha desconfiado desde o início, Ibrahim ligou para a mãe no Líbano, convocando-a a ir imediatamente ao Brasil prestar esclarecimentos. Adibe embarcou o mais rápido possível e os dois tiveram uma conversa dura, presenciada por Carol, em um quiosque de frutas numa avenida de São Paulo. Adibe não admitiu saber que os verdadeiros compradores eram da tal família, reafirmando que toda a negociação havia sido intermediada por um senhor maronita de grande honestidade e dignidade.

Enquanto discutia com o filho naquela tarde, Adibe olhava para a neta sentada ao seu lado. Ironicamente para Mireille, quanto mais Carol crescia, mais as pessoas diziam que ela se parecia com Adibe. Embora a avó tivesse um grande amor por Carol, nunca se sentia à vontade para manifestá-lo. Afinal, como era possível uma desclassificada como Mireille ter tido uma filha tão igual a ela, Adibe, não apenas fisicamente, mas até mesmo na personalidade?

Ibrahim não se convenceu com os argumentos da mãe sobre a negociação da fazenda. As relações entre eles, que já eram ruins, ficaram comprometidas de vez a partir dali.

A versão da história que chegava à alta sociedade do Líbano era a de que Ibrahim não estava sendo um bom filho, que não entendia os esforços da mãe e a fazia sofrer por ter se rebelado contra suas vontades. Quando tomava conhecimento desses comentários, Ibrahim ficava muito irritado e cada vez mais compreendia que o desprezo pela elite libanesa que Mireille sempre demonstrara era um dos fatores que mais o atraíram na esposa.

A casta que se considerava a elite do Líbano adorava manter as aparências, o glamour, o status, mas apreciava uma boa fofoca. Motivos para tanto não faltavam: debaixo do tapete de casamentos supostamente felizes e relações perfeitas entre pais e filhos – como faziam supor as notas e fotos das colunas sociais – havia muita hipocrisia. Eram pessoas que não raro se odiavam, mas na frente dos outros agiam como se adorassem umas às outras.

Essa casta era composta por um grupo pequeno de famílias, onde todos se conheciam. Era um clube fechado, que não admitia intromissões. Os filhos dessas famílias normalmente se casavam entre eles, estratégia para perpetuar o status que julgavam desfrutar. Consideravam-se nobres, cultos, capazes de representar bem o Líbano em qualquer lugar do mundo. Não aceitavam o fato de que o país já estava sendo representado havia muito tempo por outros, mundo afora, alguns de forma exemplar e outros nem tanto, independente de religiões, classes sociais ou de qualquer ascendência secular.

Por sua força, cultura e beleza, Adibe foi de tal forma abraçada por essa elite que acabou se identificando com ela e agindo como se nunca tivesse estado fora dela, para espanto do filho.

Se havia alguém no Líbano que não compartilhava da opinião geral sobre Ibrahim, era seu sobrinho Fady, filho único de sua irmã Nouhade. Fady sofria ao ouvir comentários maledicentes sobre o tio, pois sempre tivera verdadeira adoração por Ibrahim. Na adolescência, passou uns tempos com ele no Brasil e chegou a ganhar uma pequena motocicleta de presente do tio, para que pudesse se sentir livre, situação oposta à que lhe era imposta no Líbano. Para um jovem criado sob o rigor de uma família conservadora, e de uma guerra civil sem fim, aquilo soava como um admirável mundo novo.

A experiência brasileira ficou tão marcada para Fady que, depois do rompimento da mãe e da avó com Ibrahim, ele decidiu escrever uma longa carta ao tio, em que revelava a vontade de fugir do Líbano, assim como o próprio Ibrahim fizera. Perguntava se o tio o receberia no Brasil. Ibrahim decidiu não responder a carta. “Se eu disser que o aceito aqui, matarei minha irmã e meu cunhado de desgosto. Se eu disser que não o aceito, deixarei o rapaz triste e desesperançado”, pensava. Ibrahim só não imaginou que talvez a irmã aprovasse o pedido do filho, desejando que ele tivesse uma experiência de vida menos violenta do que aquela no Oriente Médio. 

A solução encontrada por Ibrahim – simplesmente não se manifestar a respeito – decepcionou Fady. Ele preferia ouvir um “não” à suposta indiferença demonstrada pelo tio. Assim, o que era admiração e idolatria virou tristeza. Fady prometeu que jamais voltaria a falar com Ibrahim. Continuou, porém, trocando correspondências com Carol.

Nesses contatos, os dois agiam como se os pais não existissem. Tanto Nouhade quanto Ibrahim sabiam que os filhos se correspondiam e, no fundo, ficavam felizes ao perceber que algum tipo de vínculo estava sendo mantido na família. Era a esperança de que, um dia, as relações entre todos se tornassem mais harmoniosas.

Carol e Fady tinham boas histórias em comum. Uma das visitas que Carol fez ao Líbano, desta vez apenas ao lado do pai, ocorreu no auge da Guerra Civil, em 1982, quando ela tinha 18 anos. A destruição já podia ser percebida logo na chegada a Beirute: o aeroporto projetado por Zareh estava parcialmente destruído e quase sem iluminação. Naquele momento era controlado pelos fedains, a milícia do comando arabe pró-palestinos, mas a qualquer momento poderia ser tomado por milícias cristãs da falange ou pelos muçulmanos xiitas do Hezbollah.

Criado por um grupo de clérigos xiitas, oriundos do Irã, o Hezbollah (“exército de Deus”, em árabe) surgiu no Líbano na virada da década de 70 para a de 80, em meio à Revolução Islâmica no Irã (1979) e à invasão israelita ao sul do Líbano (1982). O principal objetivo do Hezbollah ao ser oficializado, em 1982, era expulsar as forças armadas israelitas do sul do Líbano e estabelecer um estado islâmico nos moldes daquele criado no Irã.

O Hezbollah estabeleceu-se principalmente nas áreas de maioria xiita do Líbano, como o sul do país, o Vale de Bekaa e o sul da cidade de Beirute. Os militantes do grupo foram recrutados entre jovens xiitas, muitos dos quais tinham sido membros do Amal, milícia laica pró-Síria. O Hezbollah foi apoiado financeiramente pelo Irã e mais tarde pela Síria, que utilizou o grupo na disputa com Israel sobre os Montes Golã.

Em 1987, apareceria, no território da Faixa de Gaza, o Hamas, nos mesmos moldes do Hezbollah. O Hamas é um grupo político palestino, cuja sigla designa o Movimento de Resistência Islâmica – ou seja, a luta contra a existência do Estado de Israel. Preconizando essa luta por todos os meios, visando a libertação da Palestina “desde o Rio Jordão até o mar”, o Hamas é contrário às políticas da OLP e da Fatah, às quais considera conciliadoras.

No aeroporto em ruínas de Beirute, assim que desciam do avião os passageiros eram transportados por um ônibus caindo aos pedaços, sem bancos e com marcas de balas. O cunhado de Ibrahim, que àquela altura era procurador-geral da República do Líbano, estava à espera de Ibrahim e Carol. No carro, toda a conversa entre ele e o motorista se deu em torno da melhor rota a cumprir, levando em conta os movimentos mais recentes da guerrilha.

Apesar do aparente caos, os libaneses tentavam levar a vida mais normal possível. Quando a sirene tocava anunciando bombardeios, todos desciam aos abrigos antiaéreos que haviam sido construídos nos porões das casas. Permanecia-se lá por dois ou três dias. Era fundamental levar um radinho a pilha, para acompanhar as notícias, e um baralho. Outro passatempo era tentar adivinhar, pelo som dos bombardeios, o bairro que estava sendo atingido. Poucos dias depois da chegada, Carol e Ibrahim viveram a experiência do abrigo antiaéreo. Era tudo assustador e ao mesmo tempo fascinante para ela.

Os bombardeios eram tão intensos e intermitentes naquele ano que Carol só conseguia adormecer usando fones de ouvido com música em volume alto, para cobrir o ruído das bombas. Ajudava, também, imaginar que estava próxima a um dos estádios de futebol de São Paulo e que aqueles sons eram fogos de artifício em comemoração a gols e vitórias.

Certo dia, Carol foi levada pelo primo Fady para uma grande aventura: visitar o centro de Beirute – que, àquela altura, não era muito mais do que um amontoado de ruínas. Tal incursão era evidentemente perigosa, não apenas pela presença de milícias antagônicas, mas também pela existência de minas.

Foram cenas inesquecíveis para Carol, que, na infância, havia testemunhado a exuberância do centro de Beirute, cheio de vida com o mercado público, as feiras, as lojas sofisticadas. Antes da guerra, a cidade era muito procurada por turistas, interessados em sua riqueza histórica e arquitetônica. Agora os prédios estavam quase todos destruídos. As poucas paredes que restavam em pé haviam se transformado em peneiras, cheias de furos.

Fady era o guia de Carol naquele inusitado tour pelo centro de Beirute. A cidade estava dividida pela chamada “linha verde”, que colocava cristãos de um lado e muçulmanos de outro. No caminho, os veículos que circulavam eram parados em barricadas de guerrilheiros, que enchiam o condutor de perguntas.

Certamente por influência dos traumas causados pela guerra, Fady havia desenvolvido uma gagueira nervosa. Com esse problema na fala, ele tinha dificuldade para responder às perguntas nas barricadas. E o pior é que a gagueira aumentava ainda mais quando o rapaz ficava ansioso. Assim, ele e Carol permaneceram longos períodos estacionados nas barreiras tentando explicar dois fatos: o que uma jovem vinda do Brasil fazia por lá e, afinal de contas, que tipo de turismo era aquele? Para complicar ainda mais, as respostas tinham que ser elaboradas de diferentes formas, dependendo da facção que ocupava cada barricada naquele momento.

Não foi à toa que Carol alegrou-se infinitamente quando o passeio chegou ao fim e ela pôde se ver novamente na “segurança” do abrigo antiaéreo...

 

***

 

Depois que Ibrahim voltou ao Brasil com Carol, suas brigas com Mireille continuavam alcançando um nível de dramaticidade que freqüentemente levavam Carol às lágrimas. Quando os dois se empenhavam em insultar um ao outro, esqueciam completamente que havia por perto uma criança e depois uma adolescente tentando amadurecer e entender a vida.

Ibrahim era capaz de chamar a mulher de “fútil” ou de “armênia” em tom de desprezo, enquanto Mireille – que demonstrava muito talento como provocadora e uma grande capacidade para ferir com a língua – dizia que se arrependia muito por não ter ficado com um dos maridos anteriores. Ou então falava mal da sogra, outro ponto sensível de Ibrahim.

Eram duas ou três horas ininterruptas de agressões verbais. Depois havia dois ou três dias de silêncio recíproco, até que, de repente, um dos dois puxava conversa e tudo ficava bem. Mas nenhum deles pensava em “discutir a relação”, como se diz hoje, e avaliar os motivos da briga para prevenir novas discussões. Quando tudo parecia calmo, outra discussão começava inesperadamente.

Às vezes, objetos voavam pelas janelas. Em uma ocasião, a TV foi arremessada por Ibrahim e arrebentou-se do lado de fora. No dia seguinte, sem falar nada, ele saiu de casa cedo e voltou com um novo aparelho. Os vizinhos, é claro, achavam aquele casal um tanto fora dos padrões, o que deixava Carol muito envergonhada.

No começo, a menina tentava fazer o papel de advogado de defesa do lado que ela julgava ter razão. Às vezes ficava do lado do pai, porque achava a mãe agressiva; outras vezes do lado da mãe, porque achava o pai intolerante.

Com o tempo, percebeu que os esforços de pacificação eram inócuos. Ela passou a interpretar as brigas como uma necessidade deles. É como se precisassem disso para se sentir vivos e reinventar a cada dia a relação entre duas pessoas muito diferentes uma da outra.

Na adolescência, Carol passou a ter plena convicção de que a mãe não conseguiria viver sem o pai e vice-versa. E que o erro de ambos talvez tenha sido o de casar achando que seriam capazes de mudar o outro.

As brigas eram desencadeadas por qualquer motivo, mas certamente a situação financeira continuava não ajudando muito. Com o desligamento de Ibrahim dos negócios da família, houve um período de instabilidade. Mireille não queria e não tentava ajudar – continuava a gastar como se nada tivesse mudado. Foi somente com o impulso dado pelo dinheiro da venda da fazenda aos novos empreendimentos de Ibrahim que a situação financeira da família voltou a ficar estável.

Inspirado pelos conhecimentos adquiridos com a mãe, grande colecionadora de jóias e objetos de arte, Ibrahim tornou-se perito avaliador de antiguidades e tapetes persas reconhecido oficialmente pelo estado de São Paulo. Passou a prestar serviços como marchand para os lares mais endinheirados. Importava do Oriente Médio terços antigos, conhecidos como masbahas, para vendê-los aos colecionadores que tinham dificuldades para encontrar essas jóias raras no Brasil. Construiu uma reputação invejável no meio e durante anos cercou a família de peças de arte belíssimas. Assim, Carol pôde conhecer um pouco da história da arte, dos objetos orientais, das jóias e mais adiante reconhecer cristais Lalique, louças Limoges, ovos Fabergé e pedras preciosas oriundas dos quatro cantos do mundo.

Mas os anos de dificuldades também deixaram marcas. Algumas seriam lembradas com humor pelo casal. Mireille e Ibrahim sempre foram fumantes inveterados e mesmo com a falta de dinheiro não deixaram o vício. Certa vez, quando Ibrahim não tinha no bolso mais do que o dinheiro para um maço de cigarros, foi comprar aquele que seria seu último refúgio de prazer em um momento de desesperança. À porta do bar da esquina, um vendedor de loteria insistiu para que ele comprasse um bilhete. De nada adiantava Ibrahim explicar que não tinha dinheiro: o homem insistiu tanto que convenceu Ibrahim a trocar o cigarro (embora estivesse louco por uma tragada) por um bilhete.

Quando chegou em casa sem os cigarros, Mireille – que também estava subindo pelas paredes com vontade de fumar – ficou possessa com a história contada por Ibrahim. A briga só terminou quando os dois, vencidos pelo cansaço, foram dormir. Quis o destino, contudo, que aquele bilhete fosse premiado, revertendo em um dinheiro suficiente para tirá-los do sufoco por alguns meses.

Para Ibrahim, aquela demonstração de sorte era a prova irrefutável de que a distinção oferecida ao seu tataravô pelo império turco era mesmo uma dádiva que iluminava seus descendentes. Já Mireille não sabia se ria ou chorava. Estava em dúvida se ter recebido aquele dinheiro inesperado compensaria ouvir mais uma vez a ladainha sobre a família de Ibrahim...

Mireille e Carol acharam que aquele era o momento ideal para pedir o que tanto desejavam: uma TV em cores, para que as duas assistissem juntas aos filmes que passavam de madrugada.

Numa dessas madrugadas, ao voltar de uma noitada de jogatina no Clube Zahle, Ibrahim apareceu com uma versão própria do tão esperado presente: uma película de acetato, do tamanho da tela do televisor, dividida em quatro cores: azul na parte de cima, laranja e amarelo no centro, e verde na parte inferior. Ibrahim instalou a película na tela e anunciou que aquela era a nova televisão colorida da casa... As duas caíram na gargalhada e abraçaram Ibrahim, enchendo-o de beijos. Sabiam que o dinheiro da loteria era bom, mas não suficiente para mudar drasticamente a situação em que viviam naquele momento.

Mireille limpava a película diariamente e Carol, ao vê-la cumprir a tarefa, entendia o quanto a mãe amava seu pai. Um ano depois, a família finalmente ganhou uma legítima TV colorida.

 

***

 

Apesar das dificuldades financeiras causadas pela guerra, o velho Zareh viajava com certa freqüência ao Brasil para visitar a filha, o genro e a neta. A primeira dessas visitas foi uma surpresa para comemorar os oito anos de Carol. Ao voltar da escola, no ônibus escolar, a empregada que a aguardava na calçada do prédio da Rua Cubatão disse à menina que o apartamento estava repleto de pessoas esperando por ela. Sem saber de quem se tratava, Carol entrou no apartamento e deu de cara não somente com seu avô Zareh, mas também com a avó Marie e o irmão do avô, Ara, sua esposa Mary e a filha Elise, prima temporã de Mireille.

Foi um período de muita felicidade para a família. Todos dormindo amontoados naquele pequeno apartamento, conversando até o amanhecer, passeando por São Paulo e levando Zareh cada dia a um restaurante diferente. O fato mais divertido é que Ibrahim tinha um Gordini, carro pequeno demais para tanta gente e sobretudo para o tamanho de Zareh. A primeira providência do pai de Mireille foi presentear Ibrahim com um carro muito maior, um Landau quatro portas, com capacidade para acomodar a todos.

Era uma família ruidosa e espaçosa, que não passava despercebida nos passeios a Guarujá, Santos e diversas localidades do interior do estado. Quando voltavam para casa, Carol e a prima ficavam horas namorando as bonecas da loja de brinquedos ao lado do prédio. A preferida de Carol era a Tippy, que até andava de bicicleta. Sabendo das dificuldades financeiras dos pais, no entanto, ela não se importava em ficar apenas imaginando as brincadeiras.

Ao longo daquelas inesquecíveis semanas, Zareh voltou a inventar estórias usando os dedinhos dos pés da neta como personagens. Carol dormia espremida entre os avós, feliz da vida. Ninguém tinha coragem de lembrar a ela que se tratava apenas de uma visita. Não tardou para que chegasse o inevitável momento da despedida. No aeroporto, a menina teve uma crise de choro e se agarrou ao paletó do avô. Gritava que aquilo era uma enorme injustiça, e que separá-la dele novamente era pior do que todos os ataques de asma que sofria.

-- Isso sim é como morrer!, gritava, com surpreendente grau de dramaticidade para uma menina de oito anos.

As pessoas que passavam pela fila de embarque se comoviam com a cena. E Carol aproveitava para pedir a cada uma delas que convencesse o avô a ficar para sempre.

Na visita seguinte ao Brasil, desta vez sozinho, Zareh percebeu que Carol já não era a mesma menininha que não desgrudava dele. Aos 13 anos, ela tinha outros interesses. Acabara de conhecer o primeiro namorado e preferia, naturalmente, a companhia do rapaz à do avô, por mais que o amasse.

 Quando Zareh partiu, Carol sentiu um aperto no coração parecido com aquele de quando deixou o amigo de infância esperando na porta do cinema. Achou que talvez o avô estivesse chateado com a forma menos calorosa com que agira durante essa visita dele ao Brasil. Como lhe ensinara a avó Marie, prometeu a si mesma que da próxima vez faria de tudo para corrigir o erro e voltar a ser a mesma neta carinhosa de sempre.

A oportunidade chegou três anos depois, em fevereiro de 1979. Carol estava ansiosa para rever o avô e restabelecer a relação nos moldes antigos. Zareh chegaria ao lado de Marie, que na velhice voltara a ser sua companheira inseparável. O casal decidira se mudar definitivamente para o Brasil, exatamente como Zareh prometera a Carol um dia. O velho engenheiro queria passar os últimos anos ao lado das três mulheres mais importantes de sua vida: a esposa, a filha e a neta.

Ibrahim, Mireille e Carol foram recebê-los no aeroporto de Viracopos, em Campinas. A expectativa era tanta que nenhum deles tinha conseguido dormir direito à noite. Haviam passado as semanas anteriores arrumando a nova casa, que Ibrahim decidiu alugar no bairro de Moema para receber melhor os sogros. Carol fez questão de ir ao cabeleireiro e alisar os agora longos e cacheados cabelos, só para que o avô a achasse bonita.

Partiram rumo a Campinas ainda antes de amanhecer, no velho Landau que haviam ganho de Zareh. No aeroporto, os três subiram ao andar de cima para visualizar a pista e acompanhar a chegada do Air France que trazia os visitantes.

Parecia que uma eternidade havia se passado até o momento em que o avião finalmente pousou em Viracopos. Assim que Zareh apareceu na porta e colocou os pés no primeiro degrau da escada, Marie, que vinha logo atrás, avistou a família e chamou a atenção do marido. Emocionado, Zareh olhou e acenou naquela direção, mas mal teve tempo de identificar a silhueta de sua amada neta entre as pessoas que acompanhavam o desembarque. Um ataque cardíaco fulminante o matou ali mesmo, momentos antes de pisar o solo brasileiro.

A figura dos avós na vida das crianças tem muito mais importância do que se imagina. Zareh dedicou à neta um amor incondicional. Foi diante dele que a menina pronunciou sua primeira palavra, Zozo, apelido pelo qual ela o chamaria pelo resto da vida, e escreveu sua primeira palavra, o próprio nome.

Foi com o avô que Carol aprendeu a contar até dez, a cantar em armênio, a sentar-se à mesa em um restaurante, comer corretamente, a não mentir, a chorar no colo de quem se confia, a desconfiar quando necessário, a amar a vida e a se resignar diante do fato que é possível continuar vivendo depois da morte de quem se ama.

 

***

 

A imensa tristeza pela morte do avô começou a ser amenizada algum tempo depois, quando Carol conheceu o rapaz, um colega de escola, que iniciaria um novo capítulo de sua vida.

Carol estava interessada, mas ele tinha namorada. A jovem compartilhou a angústia com a mãe, que, lembrando de sua juventude, sentiu a velha faísca de femme fatale se reacender para dar conselhos à filha e ensinar seus infalíveis truques de sedução. Eram, basicamente, aqueles mesmos que Mireille cansara de usar em suas conquistas: fingir que não estava dando a mínima, bancar a misteriosa e gritar aos quatro ventos o imenso número de rapazes interessados nela. 

Diariamente a mãe aguardava a filha chegar da escola para saber das novidades. Juntas, debruçadas sobre um prato de sorvete de café, as duas planejavam as próximas ações. Para Mireille, aquilo era reviver. Só dois anos depois, contudo, começaria o namoro – que se prolongou por oito anos até o casamento, quando Carol tinha 26 anos.

Cada um a seu modo, Ibrahim e Mireille sofreram quando a filha saiu de casa. Ibrahim sempre foi muito dependente de suas relações afetivas. Quem visse aquele homem forte, seguro, não imaginaria sua vulnerabilidade. Ele passou a vida se entregando emocionalmente às pessoas das quais gostava, talvez por não ter tido quem fizesse isso por ele na infância. Não conseguia conviver com a idéia de que alguém que ele amava tanto, como Carol, poderia ser feliz longe dele. Já para Mireille tudo era bem mais simples: a dor da distância seria compensada pela felicidade da filha.

Adibe esteve no Brasil nas semanas que antecederam o casamento de Carol, mas não quis ficar para a cerimônia. Ela não gostaria de presenciar a neta se casando com um neto de italianos, descendente de cristãos novos. Sonhava vê-la unida a um representante da velha casta libanesa.

Além do mais, o noivo tinha a mesma idade da neta, e, na visão de Adibe, o melhor casamento acontecia entre uma mulher jovem e um homem mais velho, pois ele não teria tempo para se cansar dela e procurar outra. Adibe se baseava no próprio exemplo: tinha 23 anos quando se casou com Shahim, um homem 15 anos mais velho.

Adibe considerava que casar por amor era entregar-se ao sofrimento. Por isso, não ficava nem um pouco constrangida ao negociar casamentos arranjados para os membros de sua família – que, por respeito ao poder da matriarca ou às tradições, permitiam tal interferência. A exceção fora Ibrahim, e agora a história se repetia com a neta.

Carol já era mulher feita e queria ter a oportunidade de sentar-se ao lado da avó para explicar suas razões e argumentos. Mas Adibe nunca havia dado esse tipo de abertura à neta – para ninguém, na verdade. A postura dela, o tom de voz, monótono mas firme, a impávida expressão que não deixava transparecer emoções, tudo contribuía para transformar uma suposta conversa em monólogo, em discurso, em sermão. Adibe falava para ser ouvida e obedecida.

E era tão auto-suficiente... Certa vez, em Paris, ela escorregou, caiu, bateu a cabeça e teve um coágulo. Precisava ser operada, e seria uma operação de risco. Ibrahim foi avisado no Brasil e correu para a capital francesa, com Carol. Lá chegando, descobriu que a mãe havia convencido o médico de que seria melhor não fazer a cirurgia, com base em uma estranha lógica cartesiana. Perguntou o que poderia acontecer se ela não fosse operada: o médico disse que o coágulo poderia crescer, virar um aneurisma e matá-la a qualquer momento, ou então retrocederia espontaneamente e desapareceria. Em seguida, ela perguntou o que poderia acontecer caso optasse pela cirurgia: o médico disse que a intervenção poderia ter sucesso, mas havia o risco, inevitável, de que algo desse errado. Então ela arrematou:

-- Já que minhas chances são de 50% de um jeito ou de outro, não vejo vantagem alguma em fazer a cirurgia.

Em outra ocasião, durante a visita de Ibrahim e Carol ao Líbano em 1982, a família jantava ao redor da suntuosa mesa da casa de Adibe quando um estrondo transformou as janelas da sala de jantar e dos quartos em estilhaços. Enquanto Ibrahim e Carol se puseram a gritar, em busca de abrigo, Adibe nem piscou os olhos. Ordenou que os dois voltassem imediatamente à mesa e continuassem a refeição. Ao final do jantar, ela se informaria sobre a causa da explosão. Telefonou então para um de seus contatos no governo e descobriu que a Embaixada dos Estados Unidos havia sido atingida por um carro-bomba, vitimando mais de 200 marines norte-americanos.

O mais curioso é que, mesmo sabendo que seu neto Fady estudava à noite na Universidade Americana, localizada bem em frente ao consulado, Adibe continuou a demonstrar uma assombrosa calma até que o neto telefonasse para avisar que estava a salvo. Só no dia seguinte, no terraço do apartamento de Nouhade, de onde observava ao lado de Ibrahim e Carol a retirada dos pedaços de corpos lançados pela explosão para dentro do Mar Mediterrâneo, a dama de aço chorou.

Adibe morreu muitos anos depois, em 1996, sem voltar a se relacionar bem com o filho e sem presenciar a chegada da primeira bisneta, filha de Carol, no mesmo ano. No final da vida, ao menos, parecia tolerar melhor a presença de Mireille ao lado de Ibrahim. Afinal de contas, a união que ela previra não durar nem seis meses já se prolongava por quase quatro décadas.

Intimamente, Adibe reconhecia as virtudes da nora e admirava o seu jeito de encarar a vida, embora fosse absolutamente oposto ao seu. Ela jamais daria o braço a torcer, contudo.

Por sua vez, Mireille também reconhecia a força de Adibe, que lutou bravamente por seus ideais e, de certa forma, foi vítima dos acontecimentos que cruzaram seu caminho. No fundo, era solitária. Não permitia que os outros ultrapassassem a barreira criada pela personagem que lapidou ao longo dos anos. Adibe não cultivou amigos. Ninguém sabia exatamente o que aquela mulher sentia.

Carol via com tristeza o fato de jamais ter conversado “de verdade” com a avó. Depois da morte de Adibe, a neta passou a lembrar dela não como uma mulher fria e distante, mas sim como a avó carinhosa e acessível que talvez tivesse sido caso as circunstâncias da vida de ambas fossem outras.

Certa vez, Carol dava conselhos a uma amiga quando se lembrou de algo que a avó Adibe havia lhe dito. Mas logo parou para pensar se aquilo não havia sido dito por sua mãe… Naquele momento notou como a imagem das duas se fundia em sua mente. Carol se deu conta, então, de que nunca duas mulheres foram tão parecidas quanto Adibe e Mireille. A embalagem podia ser diferente, mas a essência era a mesma.

Com o passar dos anos, Ibrahim, Mireille e Carol tornaram-se, acima de tudo, grandes amigos e cúmplices. Quando a filha, já adulta, passou a apresentar sintomas do que mais tarde seria diagnosticado como Síndrome do Pânico, Ibrahim contou a ela que teve algo semelhante na juventude, a ponto de ter sido internado para tratamento. Só que, naquela época, o diagnóstico que Adibe recebeu do médico foi, simplesmente, o de que o filho estava enlouquecendo.

Carol compreendeu naquele momento porque o pai tomava tantos “calmantes” desde que ela era pequena. E descobria, enfim, que a culpada por tantos remédios não era Mireille, e sim aquela sensação de medo paralisante que consumiu o pai por vários anos, desde antes de conhecer a esposa.

Mireille também enfrentou muitos problemas de saúde ao longo da vida, embora, no caso dela, seja possível responsabilizar em grande parte a sua hipocondria. A única doença de longa duração que teve de verdade foi depressão, jamais diagnosticada devido à forma exuberante e voraz de viver. Antes do diagnóstico, contudo, ela e Ibrahim peregrinaram por dezenas de médicos, que não conseguiam encontrar nada de errado em Mireille.

Durante muitos anos, a mãe foi um enigma para Carol. Um enigma por vezes assustador, por vezes inspirador. As duas conversavam abertamente sobre qualquer assunto, menos sobre os sentimentos de Mireille. A mãe falava sobre seu passado, os lugares visitados, as amizades que fizera ao longo da vida, as lições que aprendeu a duras penas, os homens que passaram por sua vida, mas relatava tudo com a leveza e a distância de quem escreve um romance em terceira pessoa. O que ela sentia, de verdade, era algo que guardava apenas para si – exatamente como a sogra fazia.

 

***

 

Quando completou 40 anos, Carol ingressou no curso de filosofia. Em uma determinada aula, o professor comentou um experimento científico sobre estímulos. Uma espécie de sapo havia sido usada como cobaia. Quando esses animais desejavam se alimentar, esticavam a língua e capturavam um mosquito ou outro inseto presente na natureza ao redor. Os cientistas trataram então de confinar esses sapos em ambientes sem mosquitos, mantendo-os muito bem alimentados. Ainda assim, sem fome, eles continuavam esticando a língua em busca de insetos imaginários.

O professor relatava que o teste progrediu e os pesquisadores perceberam que, quanto menos encontravam os insetos, mais os sapos esticavam a língua em busca deles, até que o processo evoluiria para um mecanismo obsessivo. A teoria surgida a partir desse experimento pregava que, uma vez instalada a prática habitual resultante de um estímulo, animais podem responder a esse estímulo mesmo na sua ausência.

Carol aproveitou a deixa para perguntar ao professor se poderia haver alguma relação entre essa experiência e as síndromes obsessivas manifestadas pelos humanos. Ele respondeu que muito provavelmente sim. Carol fez então uma ligação imediata com a Síndrome do Pânico e o seu passado: se a doença desperta o mecanismo que faz sentir medo, é possível que o mal seja uma resposta tardia a um estímulo sentido muitas vezes anteriormente. E a menina havia passado toda a infância em sobressaltos causados pelas brigas dos pais.

          Carol foi então comentar a história dos sapos com o pai e a reação foi a pior possível. Ibrahim disse que aquilo tudo era uma enorme bobagem. Talvez tenha imaginado que a filha estava tentando culpar a ele e à mãe pela doença que a afligia.

Ibrahim não se mostrava nem um pouco confortável com o fato de ver a filha estudando filosofia, já que ele costumava ser a fonte de respostas para todos os problemas terrenos e existenciais que atormentassem Carol. Agora ela estava buscando esse tipo de informação em outras fontes. Ibrahim dizia que aquilo era uma grande perda de tempo, porque tudo o que se pode saber ou não sobre a vida cada um de nós vai descobrindo enquanto vive. A filosofia não teria, assim, a menor utilidade prática. Era um argumento que surpreendentemente contrariava a crença no valor do estudo e do conhecimento que Ibrahim sempre manifestara.

-- Veja o meu próprio exemplo. Estudei filosofia, mas jamais consegui mudar sua mãe!

Duas décadas antes, quando Carol decidiu disputar uma vaga na faculdade de marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), foi por influência do pai. Em uma época ainda com poucos cursos na área, ele a convenceu de que aquela seria a profissão do futuro. Ibrahim havia se rendido a Mireille! Carol seguiu o conselho, ingressou na universidade e se formou. Ela cogitara virar advogada, mas foi também o pai quem a desmotivou, lembrando-a de que a profissão estava saturada e a concorrência seria muito grande até que ela se transformasse em uma profissional reconhecida.

-- Vai ter que trabalhar em porta de cadeia ou dividir escritório com outros 5.000 advogados!, exagerava Ibrahim.

O ingresso na faculdade de filosofia levou Carol a uma reaproximação, ainda que rápida, com a tia Nouhade, que nunca saiu do Líbano. Nouhade, que também havia estudado filosofia na juventude e se lembrava daqueles anos como os melhores de sua vida, ficou sabendo da novidade pelo filho, Fady, que continuava se correspondendo com a prima no Brasil. Embora permanecesse rompida com Ibrahim, Nouhade escreveu um e-mail à sobrinha dando-lhe os parabéns e confidenciando que se arrependia por não ter dado seqüência aos estudos nessa área. Carol respondeu dizendo que ficava feliz em saber a opinião da tia e que aparentemente aquele pequeno ramo da grande família Malouf tinha vocação para seguir o caminho dos antepassados poetas e escritores das aflições humanas.

Em 2003, um câncer de cólon foi diagnosticado em Ibrahim. O médico disse que, em 90% dos casos, esse tipo de câncer é hereditário. Perguntou se havia outros casos na família. Sob o impacto da notícia, Carol decidiu ligar para a tia Nouhade ainda do hospital. Contou-lhe sobre a doença do pai e as duas começaram a chorar. A sobrinha alertou a tia sobre a necessidade de cuidar da saúde, já que se tratava de um mal hereditário, e Nouhade agradeceu a preocupação.

Então Nouhade pediu para falar com o irmão. Parecia que o tão esperado momento de reconciliação finalmente chegara. Ibrahim pegou o telefone e deu início a uma conversa emocionada. Pouco depois, contudo, ele e a irmã já haviam descambado para agressões mútuas.

-- Meu câncer tem alguns nomes, e um deles é o seu – acusou Ibrahim.

-- Pelo menos você ainda está vivo, enquanto eu já estou morta há muitos anos. E quem me matou foi você! – respondeu Nouhade.

Ambos falavam irados ao telefone. Ibrahim estava aos gritos, no meio do hospital, ofendendo a irmã de todas as formas que conhecia – menos mal que falava em árabe.

          Com a doença do pai, Carol passou a refletir mais e mais sobre o passado de Ibrahim e Mireille, tentando compreender a natureza daquela relação tão tempestuosa. Seria, afinal de contas, um caso de amor?

Mas como poderia ser amor se os dois passaram a vida às turras? Como poderia ser amor se, em tantas ocasiões, eles demonstraram não saber lidar com as diferenças de personalidade e na forma de encarar a vida?

Nem o peso da idade amenizou a intensidade das brigas. Os dois já haviam passado dos 70 anos e, cada vez que o telefone tocava, Carol continuava com o velho receio de que fosse uma ligação do hospital, da delegacia ou do necrotério. Os dois chegaram à velhice e Ibrahim continuava acusando Mireille de ter se casado com ele apenas por birra, para contrariar a poderosa Adibe, enquanto Mireille permanecia fazendo questão de dizer como havia sido magoada pelas atitudes da sogra. Eram fantasmas que pareciam eternos.

E por que passaram a vida às turras? Talvez porque o casamento tenha sido o palco em que ambos puderam, diariamente, reafirmar personalidades tão peculiares. Ou simplesmente combater a monotonia que muitas vezes bate à nossa porta... Carol se convenceu de que falar mal um do outro era apenas o passatempo predileto de ambos.

Bastava alguém aderir às críticas, contudo, para provocar uma curiosa reação contrária. Ibrahim subitamente começava a defender Mireille, argumentando que ela não tinha culpa de ser daquele jeito por não compreender as coisas direito, e Mireille passava a defender Ibrahim, dizendo que era preciso entender que ele enfrentou muitos desgostos na vida, como a morte do pai e os desentendimentos com a mãe e a irmã.

No fundo, Ibrahim era um romântico incorrigível. Seu sonho para a velhice era construir um pequeno hotel à beira-mar, em que ele e Mireille, morando na cobertura, ofereceriam um atendimento personalizado aos hóspedes. Chegou a comprar um terreno em Caraguatatuba, litoral paulista, e iniciou a obra. Mas os contratempos provocados pela economia superinflacionada da década de 1980 o obrigaram a desistir do projeto.

Na busca por possíveis explicações para a manutenção de um casamento que muitas vezes parecia infeliz, Carol chegou à conclusão de que os pais poderiam ter interrompido a relação a qualquer momento, e certamente tiveram muitas oportunidades para isso. É provável que tenham tido outras paixões, platônicas ou não, ao longo das quatro décadas de casamento, e o fato de permanecerem juntos era apenas mais uma prova de que os vínculos que os uniam eram muito fortes.

Carol sofria ao cogitar a hipótese de ser ela a grande responsável pela permanência do tumultuado casamento dos pais. Racionalmente, ela sempre recusou essa culpa. Afinal, tanto o pai quanto a mãe poderiam ter ido embora de casa, se quisessem. Mireille teria o pai a recebê-la de braços abertos e Ibrahim poderia seguir mundo afora em busca de novas aventuras. Carol finalmente concluiu que, assim como não era ela a causa das brigas, também não era a causa das reconciliações.

Mireille e Ibrahim podiam viver sob brigas constantes, mas se passassem algumas poucas horas distantes já sentiam falta um do outro. Como um casal assim poderia se separar para sempre? Mesmo que tenham se casado por impulso e que muitas das atitudes ao longo da vida tenham sido igualmente impulsivas, naquele distante ano de 1961 ambos estavam sem planos de vida que os levassem a olhar o futuro com esperança. O encontro no Hotel Kadri foi um presságio, a oportunidade de mudar o rumo desesperançoso de suas vidas.

          Carol concluiu que aquilo que Ibrahim e Mireille sentiam um pelo outro era amor. Por vezes sofrido, por vezes tortuoso, por vezes até caricato, mas era, sim, amor.

 

***

 

Permita-me interromper sua leitura neste momento. Achei que já era hora de falar em primeira pessoa. Sou Carol, a filha de Ibrahim e Mireille. Como você já percebeu ao longo deste livro, aqui está a história dos meus pais e um pouco da história do meu país, do meu povo e de toda uma região desconhecida pela maioria dos ocidentais.

Meus pais sempre me despertaram enorme curiosidade e por vezes espanto. Quantas e quantas vezes me peguei relatando suas façanhas aos amigos e até mesmo a estranhos que acabara de conhecer? Nessas ocasiões, provocava neles a mesma reação de fascínio e estupefação que os fatos causaram em mim ao longo dos anos.

Não foram poucas as vezes que ouvi a sugestão de contar tudo – ou quase tudo – em um livro. Aqui estou eu, portanto, tentando montar um quebra-cabeças que já me ocupou por 40 anos e que, percebo claramente, permanece incompleto.

Hoje compreendo que imigrar para o Brasil me fez olhar os libaneses e os meus pais de uma forma diferente daquela que eu teria feito caso tivesse permanecido no Líbano. Provavelmente as diferenças que enxerguei neles não seriam tão evidentes numa sociedade em que ser como eles não é tão espantoso.

É falsa a idéia de que imigrantes que chegam ao Brasil ou a qualquer outro país assimilam imediatamante novos hábitos e costumes. São necessárias várias gerações para que isso de fato ocorra. No meu caso, sinto ainda que estou entre dois mundos, dois pontos distantes entre os quais ainda não consegui estabelecer uma ligação plena.

Como seriam meus pais aos meus olhos em outro contexto, no seu “habitat natural”, frutos do país que deixei na infância, de uma cultura que me foi transmitida mas com a qual pouco convivi? Quem seria eu hoje caso tivesse permanecido no Líbano, um país com metade da área do menor estado brasileiro, o Sergipe, mas que sempre foi um território conturbado por ser o ponto de intersecção entre dois mundos bem diferentes, a Europa cristã e o universo árabe muçulmano?

A difícil decisão de meu pai – deixar o país que amava acima de tudo – mostrou-se acertada. Em abril de 1975, a panela de pressão que permanecia em fogo alto no Líbano finalmente explodiu. A guerra civil tomou conta das ruas e a situação se agravou com a interferência da Síria, aliada inicialmente aos muçulmanos e depois aos maronitas.

Em 1982, apoiado por algumas facções cristãs, Israel invadiu o Líbano. Depois que bombardeios em Beirute obrigaram a OLP a se retirar, a Síria tentou reduzir a influência israelense no país. Nesse momento, a solução do conflito parecia impossível, tantos eram os grupos e facções envolvidos.

No final dos anos 80, uma proposta batizada de “reconciliação nacional”, que estabelecia igualdade entre cristãos e muçulmanos no governo, foi apoiada por Estados Unidos, União Soviética e outras potências. Mas o general cristão Michel Aoun não aceitou o acordo e se declarou presidente – até ser deposto por forças da Síria, que assumiram o papel de guardiãs da paz no Líbano. A guerra se estendeu de 1975 a 1991.

Ao final do conflito, foram necessários dez anos para recuperar o centro histórico da cidade, uma área de cinco quilômetros quadrados. O trabalho, que custou a astronômica quantia de 12 bilhões de dólares, foi inteiramente bancado pela iniciativa privada. A captação de recursos foi liderada pelo ex-primeiro-ministro Rafic Hariri. Ele se propôs, com sucesso, a restaurar a arquitetura da região tal qual ela era antes do conflito, resistindo ao caminho mais fácil de demolir os escombros e ocupar o espaço com prédios modernos. Hariri foi morto em um atentado em Beirute em fevereiro de 2005, fato que iniciou uma onda de protestos internacionais e acabou precipitando a retirada de tropas sírias do Líbano, depois de três décadas de ocupação.

Hoje, ao constatar que sou de fato uma libanesa no exílio, com coração certamente brasileiro, as emoções – que já foram de surpresa, constrangimento, orgulho, pavor, medo e intensa alegria – são agora muito mais serenas. Meus pais são quem são, provavelmente nada mais que libaneses dramáticos como todos os libaneses. E os amo assim.

Somos uma família de imigrantes – ou seja, uma família “diferente”. Apesar de termos adotado outra nacionalidade e deixado a pátria de origem, esperando assimilar as diferenças e participar dessa imensa e rica mistura que é o povo brasileiro, continuamos libaneses. Libaneses do mundo, porém.“Diferentes” também para os libaneses que ficaram. Nômades em busca de uma identidade.

            Somente em São Paulo há mais libaneses e seus descendentes do que no próprio Líbano. Libaneses que não são somente comerciantes, mas também médicos, jornalistas, escritores, banqueiros, engenheiros, professores, agricultores e empresários. Gente que veio ao Brasil não apenas com a intenção de enriquecer, mas também de contribuir para construir aquele que prometia ser o país do futuro.

Sentir-se estrangeiro tanto no país natal quanto no país que se adotou é algo comum a qualquer imigrante. Muitas vezes me pergunto se é realmente importante pertencer a algum lugar, um país, ter raízes, um governo, uma religião, um nome de família. E sempre constato que sim, tudo isso é importante – afinal, ninguém consegue viver só.

No meu caso, sou brasileira por opção. Aliás, sempre acreditei ser tão brasileira quanto todos os nascidos aqui. Fiz até um juramento no Ministério da Justiça, que me assegurou a condição de brasileira perante a lei. Em parte me enganei: sou uma libanesa, um tanto desatualizada com o meu país de origem, que continua tentando ser brasileira, por mais que muitas vezes não entenda o Brasil.

Talvez este seja um dos problemas que não permita ao Brasil superar alguns de seus obstáculos históricos. Um país de imigrantes precisa de mais tempo para que seus cidadãos desenvolvam um verdadeiro sentimento patriota. Enquanto continuarmos a nos enxergar como “filhos” ou “descendentes” desta ou daquela pátria, não nos sentiremos integrados e prontos para o desafio de construir um “Brasil brasileiro”, do qual todos, independentemente das origens, possam se orgulhar.

Já é hora, aqui no Brasil, de deixarmos de ser somente descendentes de libaneses, italianos, alemães ou japoneses para nos transformarmos naquilo que viemos procurar e que livremente escolhemos: ser brasileiros.

O Brasil da minha infância é diferente do Brasil que vejo hoje. Aquele país ufanista dos anos 70 era uma ilusão. Muitos dos estrangeiros que aqui chegaram talvez já não o enxerguem com tanto otimismo, já não apostem tanto nele. É possível que os imigrantes de hoje escolham a China ou a Índia como porto de chegada. Não faz mal: muitos aqui já chegaram e não pretendem ir a lugar algum.

Meus pais decidiram vir e ficar. Talvez a busca deles por um “verdadeiro lar” tenha sido um dos ingredientes a transformar a história de Ibrahim e Mireille em algo tão singular.

Este livro certamente serve mais a mim do que a você, caro leitor, que talvez tenha encontrado aqui um pouco de diversão e entretenimento. Para mim, esta obra é antes de tudo uma prova pública da minha aceitação e gratidão pelos pais que tenho. Eles me ensinaram que é possível ser diferente e deram início à missão que pretendo honrar, oferecendo ao Brasil o que tenho de melhor: meus filhos.

 

Agradecimentos

 

Durante muito tempo ouvia falar de uma mulher que não conhecia pessoalmente, mas já admirava. Diziam que ela tinha talento para o trabalho empreendedor e garra para fazer acontecer.

Enquanto ouvia histórias sobre esta mulher, ensaiava os primeiros capítulos deste livro. Ora com entusiasmo, ora com incerteza. E assim um ano se passou até que o destino nos colocou frente a frente num pequeno jantar informal.

Estávamos debruçadas sobre um delicioso sushi e ela começou a perguntar o que eu fazia. Contei-lhe minha trajetória profissional e por fim comecei a lhe contar sobre os primeiros capítulos do livro. Vi instantaneamente que sua linguagem corporal mudou, podia sentir um interesse maior, ela queria saber do que se tratava e perguntava mais e mais.

Então disse, com entusiasmo contagiante: “você tem que escrever esse livro!”. Nada mais. No dia seguinte eu levava meu dia normalmente, crianças na escola, almoço com amigas, faculdade, quando o celular tocou: “A senhora Ana Maria Diniz pede que a senhora venha participar de uma reunião aqui no seu escritório, quarta-feira às 15 horas.”

Compareci mesmo sem saber do que se tratava. Era como se não houvesse escolha, mesmo que eu tivesse outros compromissos marcados para aquele dia. Cheguei pontualmente, fui levada a uma sala de reuniões e lá estavam Ana Maria e mais uma pessoa. Sentei, conversamos sobre algumas banalidades e então ela me disse: “Carol, este é o Maurício, falei com ele sobre seu livro, achei a idéia sensacional e você deve terminá-lo. Maurício tem experiência e vai te ajudar, é jornalista e capaz.”

Pronto, estava resolvido. Saí de lá e entendi quem era aquela mulher. Senti pessoalmente o poder do seu toque. Ela é tudo aquilo que sempre me disseram, uma mulher forte, decidida e determinada – e, mais do que isso, uma mulher que não vê razão para não ir em frente quando acredita em algo.

Quero agradecer muito a esta mulher e ao Maurício Oliveira, que de fato comprovou ser um jornalista e homem de letras da melhor qualidade, mas acima de tudo um companheiro fiel nesta longa jornada de três anos.

Às queridas amigas que tanto gostavam de ouvir as minhas histórias e me incentivavam a escrevê-las: insistiram tanto que me convenceram. Mas fica a dúvida: será que o registro no papel tem o mesmo impacto de contá-las a viva voz? Ninguém melhor que Thaís Racy, Luciana Izzo e Pippa Glazier para dizer. Obrigada, meninas.

Não deixarei de mencionar minha psicanalista Mary Miranda, mulher de inteligência e cultura ímpares, com quem tive algumas das minhas melhores conversas. Mary foi uma das duas pessoas que leram o livro antes da publicação. Foi sua frase “fiquei com vontade de saber mais” que me fez decidir de vez pela publicação.

Ao Mario Porta, meu professor de filosofia na PUC, pedi que lesse o texto porque, além do seu senso crítico apurado, ele é de uma honestidade que chega a dar medo. Encontrei-o depois que havia terminado a leitura e, durante um intervalo para um cafezinho entre as aulas, começamos a fofocar sobre a vida dos personagens. Mario havia entendido cada um deles como eu gostaria que os leitores os entendessem. Fiquei feliz. Obrigada pela disponibilidade, professor.

E aqui também vai um agradecimento ao grande amigo “Zio” Mario Lorenzi. Ele mesmo escritor, insistiu para que eu não desistisse, me deu dicas valiosíssimas e pegou no meu pé para saber se o texto estava pronto.

Finalmente quero agradecer aos meus adoráveis filhos, que sempre demonstraram interesse pelo livro da mamãe, me pedindo para contar trechos durante o jantar. O livro é para eles. Crianças querem sempre saber quem são. Espero ter respondido boa parte de suas perguntas, grandes impulsionadoras deste trabalho.

Mas o livro jamais estaria pronto de não fosse a pessoa que me apóia e apoiou em todos os projetos que resolvi realizar na vida: meu marido, Gianca. Em momentos como aquele em que perdi meu pai percebi como sempre tive ao meu lado um outro anjo. Seu amor e carinho, seus ouvidos e ombros, têm sido ao longo destes anos a grande força em meus momentos de fraqueza.

Obrigada acima de tudo a meus personagens principais, Ibrahim e Mireille. Não fossem eles...

 

São Paulo, julho de 2007

© Copyright Tempo De C Ver

Make a free website with Yola