Marie era uma mulher doce e frágil, mas a vida lhe ensinara a se proteger dos perigos. O bairro em que ela morava era pobre, sujo, bagunçado e repleto de conflitos políticos e sociais. Na minha primeira visita, após anos de autoexílio no Brasil, desde 1970, senti medo. Afinal, voltava ao Líbano depois de fugir de uma guerra civil que começava a se formar, envolvendo facções de várias religiões locais. Cristãos, Melquitas, Muçulmanos Sunitas e Xiitas, Ortodoxos, Judeus e Drusos. Grupos que, até há pouco tempo, antes da Revolução Islâmica e o novo poderio assustador iraniano, conviviam harmoniosamente naquele país conhecido como a Pérola do Oriente Médio ou a Suíça do Oriente Médio. O Libano contemplava o mundo dentro de seu pequeno espaço e era bom demais para ser real.
Minha avó Marie, uma jogadora de pôquer destemida, havia se separado do meu avô. Na verdade, foi o contrário. Ele a deixou por causa das altas dívidas que ela acumulava nas mesas de jogo. Por isso, Marie teve que se mudar para um bairro mais modesto, habitado principalmente por refugiados palestinos. Eles estavam chegando aos milhares, fugindo da perseguição na Jordânia, após o Setembro Negro de 1970, e encontrando abrigo entre os libaneses, que ainda viam em sua causa um reflexo das próprias lutas internas que começavam a se formar.
Naquele bairro, apesar da pobreza e das dificuldades, minha avó encontrou uma inesperada sensação de conforto. As portas dos apartamentos do conjunto onde ela morava permaneciam sempre abertas. As vizinhas passavam o dia conversando enquanto cozinhavam juntas, e o trabalho mais pesado, como lavar as roupas, era compartilhado. Nos corredores, crianças brincavam sem preocupações, enquanto a música árabe, tocada a todo volume, ecoava pelas escadas. As meninas trocavam bonecas, os meninos jogavam bola ou brincavam com tampinhas de refrigerantes que encontravam. O programa mais sofisticado era ir ao cinema, aos sábados, assistir a comédias leves e ingênuas.
Foi nessa época que conheci um menino que morava no apartamento em frente ao da minha avó. Miúdo, de pele clara e olhos esverdeados, ele tinha uma coragem que me impressionava, do alto dos seus, nossos, 11 anos de idade. Fazia as compras da casa sozinho, falava com os feirantes da rua como um adulto, pegava o ônibus para atravessar a cidade e buscar alimentos que não encontrava nos mercadinhos locais.
Um dia, ele me convidou para ir ao cinema. Disse que compraria os ingressos, as pipocas e os refrigerantes com o dinheiro que havia economizado durante o mês. Ele fazia questão de oferecer. Combinamos o programa, mas, no dia marcado, ele me esperou por mais de uma hora na porta do cinema segurando a pipoca em uma mão e o refrigerante em outra, como relatou minha vó, que foi ao seu encontro para explicar minha ausência. Acontece que a outra parte da família morava do outro lado da cidade, e ninguém achou que deveria fazer um esforço para me levar ao seu encontro.
Nunca esqueci daquele dia. Chorei ao imaginar o meu amigo esperando por mim, provavelmente pensando que eu era mais uma “riquinha cristã” que não se importava com os sentimentos dos já tão maltratados palestinos. Mas ele estava enganado. Para mim, ele era muito mais importante do que qualquer amigo que eu tivesse feito em uma das caras escolas de elite no Brasil. Naquele dia, fiz uma promessa a mim mesma: jamais voltaria a magoar um amigo dessa forma.
Alguns meses depois, comecei a perceber mudanças no bairro. A presença de grupos armados crescia. Entre eles, o Hezbollah começava a ganhar força, apoiado pelo Irã, que financiava e organizava suas operações. Muitos meninos, como o meu amigo, passaram a ser recrutados para “treinamentos”. A princípio, eram ensinados a lidar com armas leves, mas logo esses mesmos jovens, cheios de sonhos e esperanças, se tornavam alvos de uma doutrinação brutal.
Os líderes do Hezbollah sabiam exatamente como manipular essas crianças, aproveitando-se de suas vulnerabilidades. Usavam histórias de vingança e honra, misturadas a discursos religiosos, para convencê-los de que sacrificar suas vidas em atentados suicidas era a forma mais pura de heroísmo. Esses meninos, que um dia brincavam nos corredores do prédio, agora eram transformados em mártires, prontos para explodir ônibus, mercados ou qualquer outro local que fosse ordenado.
Minha avó Marie, com sua sabedoria tranquila, tentou me proteger dessa realidade. “Não é culpa deles”, ela dizia. “São apenas crianças. Eles nem entendem o que estão fazendo.” Mas eu via a dor nos olhos dela, a mesma dor que sentia ao pensar no meu amigo aguardando no cinema. Será que ele também acabaria sendo aliciado? Será que, um dia, ele também acreditaria que sua única saída seria entregar a própria vida em um atentado? Seriamos nós, minha vó e eu, em parte responsáveis?
Poucas semanas depois, vários incidentes alimentaram as tensões entre os cristãos maronitas e a coalizão de muçulmanos e drusos, aprofundando o abismo entre as comunidades. O conflito foi ganhando força e, em pouco tempo, o Líbano seria arrastado para a longa guerra civil que destruiria não apenas a infraestrutura do país, mas também os laços que ainda existiam entre suas diferentes religiões e etnias.
Com o aumento da violência e o clima cada vez mais tenso, minha mãe, Mireille, e eu começamos a sentir o desejo de voltar ao Brasil. Depois de quase um ano no Líbano, finalmente desembarcamos em São Paulo, onde meu pai, Ibrahim, nos recebeu com um abraço apertado, matando as saudades que havia acumulado por tanto tempo.
Até hoje, penso no meu amigo palestino e me pergunto o que aconteceu com ele. Será que conseguiu escapar do destino trágico que atingiu tantos outros meninos do bairro? Ou será que ele também se tornou uma das muitas vidas perdidas na guerra que parecia não ter fim?
Foi ele quem me ensinou o verdadeiro valor da amizade leal e o impacto de uma promessa não cumprida. A lição que tirei daquele episódio – de nunca mais trair a confiança de um amigo – tornou-se o motor que guia minha vida. É por causa dele que busco um pouco mais de justiça no mundo, lutando para que as histórias de sofrimento, como a dele, não sejam esquecidas. Não tenho a menor duvida que o meu envolvimento e trabalho com organizações sociais se deve á ele. E por isso , só tenho gratidão. A ele devo meu senso de brutal lealdade.
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